Leio a Peregrinação do Fernão Mendes Pinto, publicada postumamente em 1614, anotada pelo historiador Neves Águas. Grande escrita, da melhor escrita, um incipit inesquecível, dos começos mais arrebatadores de uma narrativa -- porque já sabemos muito do que a seguir leremos:
«Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; [...]».
E fundamental para sabermos de que massa somos feitos, nós portugueses, mas também brasileiros, portugueses à solta nos trópicos.
Releio Capitães da Areia, do Jorge Amado, publicado em 1937 e queimado em praça pública de Salvador, com todos os livros anteriores do autor, no ano seguinte. Trinta anos depois, verifico que se mantém o encantamento com que então o li. O humor, a poética, a empatia, a envergadura de romancista. Claro que detecto hoje alguns problemas ao nível do estilo, nem sempre cuidado; mas se não há arte sem estilística (e a de Jorge Amado é adequada , porque serve a narrativa em vez de ofuscá-la) -- se não há arte sem estilo, este é insuficiente quando o escritor não é profundo. As estantes das bibliotecas públicas e privadas estão pejadas de monos irrelevantes de autores celebrados pela elegância, monos que nem sequer sobreviveram a quem os escreveu. Não Amado, de quem já alguém disse ter sido o Balzac brasileiro, pela sua dimensão de criador de mundos. Ele será sempre o deus e semi do romance da nossa língua comum -- como Eça caracterizou o (seu) amado Dickens, «deus e semi», em carta a Ramalho ou Oliveira Martins, se bem me recordo, depois de ter chamado a Balzac «semi-deus»...
Ah!, e sempre, sempre, muita poesia e muita BD, todos os dias. Os quadradinhos, que permitem a ilusão momentânea da infância e juventude perdidas; a poesia (e a música e a pintura), que quotidianamente antecipa o fim que me espera, o nada a que estou destinado, eu e as paixões da minha vida.
Eu percebo que Vasco Lourenço não queira ir para a Assembleia da República fazer figura de parvo. Percebo-o que o não queira fazer, enquanto cidadão. Enquanto presidente da Associação 25 de Abril, acho péssimo. O 25 de Abril tem muitos «espíritos»; mas o que prevaleceu, graças também ao 25 de Novembro, foi uma ideia de sociedade liberal, isto é: livre, em que o povo seria quem mais ordenava, através do voto nas urnas. Se não foi assim, se não é assim, tal não se deve a este governo, por horrível que ele seja (e é). Mas é um governo democraticamente eleito pela maioria dos cidadãos que votaram (eu pertenço à minoria cujo voto recaiu noutro partido). Logo a Associação 25 de Abril teria forçosamente de fazer-se representar, nem que fosse pelo mais insignificante vogal da Mesa da Assembleia-Geral. Os Capitães -- a quem nunca estaremos suficientemente agradecidos por nos terem libertado de um regime miserável -- teriam marcado os seu ponto, política e civicamente com muito mais vigor.