letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
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Jul 05
publicado por RAA, às 20:39link do post | comentar
O comendador Aragão era célebre em toda a Amazónia, pela sua enorme fortuna, vastidão de negócios e curiosa biografia. Fora dos que viera de tamancos, rude, analfabeto, as nádegas juvenis sempre expostas aos pontapés dos superiores, nessa época, ainda não muito distante, em que o comércio português dentro e fora da metrópole, se caracterizava por vida autoritária e rotineira. Casando a humildade com a esperteza, de marçano ascendera a caixeiro e, mais tarde, o amo, tendo de ir curar o fígado a Portugal, entendera que a melhor forma de não ser desfalcado pelos empregados, enquanto estivesse ausente, era fazer de um deles seu sócio. Aragão levara o negócio a grandes prosperidades e quando, anos depois, o abandonou, foi para se dedicar a outro mais rendoso. À mercearia sucedera um escritório de comissões e consignações -- porta aberta para todas as grandes fortunas, nesse tempo em que não era simples metáfora chamar-se oiro negro à borracha.
Cap. III, 32ª ed., p. 68.
Nota: um retrato de self made man, retrato mesquinho, sem o lado negro que se verá em Juca Tristão. É em Manaus que Alberto pede emprego ao «comendador» Aragão, chegando a invocar a sua condição de exilado político. O mesquinho Aragão, ao contrário do que esperara Alberto, recrimina-o por não tratar da sua vidinha, em vez ter andado «aos tiros e às revoluções». Para aliviar a consciência da recusa, oferece uma esmola a Alberto, que orgulhosamente recusa.
Fiquemos, para já, com um primeiro retrato de Juca Tristão, o dono do seringal «Paraíso»:
Baixo e com o sangue megro, graças a sucessivos cruzamentos, já insinuando apenas a sua remota existência, o dono do Paraíso, de mãos papudas rebrilhando anéis, mal disfarçava, sob o sorriso que lhe abria as faces largas, o olhar duro e enérgico, agora sombreado pelo chapéu.
Cap. IV, 32ª ed., p. 84.

publicado por RAA, às 17:34link do post | comentar
Ia a voltar-se para encarar quem punha dúvida na sua resolução, que era firme, mas logo se deteve numa atitude de orgulho juvenil. Tanto como aquele que cerceava a liberdade, indignava-o a alma submissa dos que acatavam, silenciosa e passivamente, a ordem iníqua. «Iria! Iria, custasse, o que custasse!»


Cap. III, 32ª ed., pp. 64-65.

Nota: Aportados a Manaus, numa escala, os futuros seringueiros são proibidos de desembaracar para uma simples visita à cidade pelo angariador de mão-de-obra, Balbino. O trecho referido, referente à atitude de Alberto em não acatar essa reflecte um espírito de insubmissão e rebeldia, além de desgosto pela passividade dos restantes trabalhadores.

publicado por RAA, às 16:26link do post | comentar
Os olhos inexperientes não encontravam referência nestas margens aparentemente sempre iguais, na vegetação que se repetia, senão na espécie, no entrançado, despersonalizando o indivíduo em prol do conjunto, único que ali se impunha. Cada curva se parecia com outra curva, cada recta com a recta antecedente; onde não exisitia barraca ou cidade, o espírito quedava-se, perplexo, a formular a pergunta íntima: «Já passei aqui ou é a primeira vez que passo aqui?»

Cap. III, 32ª ed., pp. 57-58

Nota: abordagem de um tema fundamental, o da importância do indivíduo em face do colectivo.

publicado por RAA, às 12:16link do post | comentar
Pratica sempre o crime, consciente, reflectido, dissimulado. Sê sempre mau e faz sugerir aos outros que és bom, sê sempre torpe dizendo-te honesto. Nada de violências. Hipócrita, cauteloso e subtil, conseguirás tudo, serás tudo, terás tudo. Uma hora de amor duma casada, uma condecoração, um emprego, a confidência dum segredo que compromete, dum vício que aviltece.
Para isso é necessário saberes insinuar-te, que a questão está em ter manha.
Dissimula rindo, ri ferindo. As tuas ambições, os teus egoísmos, os teus vícios e as tuas qualidades, tudos isso se mascara. Chama-se fidalguia à ambição, ao egoísmo desinteresse e ao vício honradez.
É só trocar os rótulos ao sentimento.

Palavras Cínicas

publicado por RAA, às 11:54link do post | comentar
Posted by Picasa

publicado por RAA, às 11:50link do post | comentar
Alberto já conhecia, da sua permanência no Pará, aqueles nomes que os colonizadores portugueses transportaram, outrora, para longínquas plagas, juntamente com arcaicas peças de artilharia e uma sôma formidável de ambições. Contudo, agora, a recordação dêsse passado, que a distância cobria de fausto e de heroismo, sabia-lhe bem, adoçava-lhe os lábios, a alma era como uma íntima, uma silenciosa vingança contra a indiferença que cearenses e demais matulagem revelavam pela sua condição de civilizado.
Quando estava em Portugal, o passado surgia-lhe apenas em exemplo político a seguir, em lição que urgia decorar e manter para felicidade do país. Mas era só riqueza colectiva o que êle encontrava no luzimento pretérito da raça, de que dava notícia a história. Não a sentia nem a gosava individualmente. [...]
Com o seu desdem pelos rebentos dos descobridores, os brasileiros com quem êle convivera tinham-no levado a um exacerbado patriotismo. [...]

Cap. II, 1ª ed., p. 41.

publicado por RAA, às 01:23link do post | comentar
As palavras-de-ordem nas manifestações, da esquerda, pelo menos, são muito prosódicas e devedoras da poesia popular. Foi o que me ocorreu naquela célebre manif contra a guerra no Iraque, que tem andado deveras irritante neste blogue que se pretende pacífico (mas não pacifista). A palavra-de-ordem do momento era: «Aznar, Bush e Blair / esta guerra ninguém quer!»:

Quando eu era jovem, as massas industriaram-me na poesia popular.
SOARES LADRÃO / ROUBA O PÃO
alertavam-me as paredes
com a força das convicções
e dos erros ortográficos.
Por vezes os versos eram brancos
embora vermelhos
por vezes eram brancos.
Assim o muro da recta do Dafundo
SOARES LADRÃO AMDA A ROUBAR O DINHEIRO DO POVO GATUNO VAI PARA A RUA JÁ!
podíamos ler nos idos de 70
e até algum 80.
Ainda hoje a poesia popular me persegue.

3-VII-2003

publicado por RAA, às 00:55link do post | comentar
A sua epiderme contraía-se sob a força do asco que o convés imundo lhe causava. Sentia-se inadaptado, estranho ali, quase inimigo das vidas que o cercavam, aparentemente alheias a tudo quanto não fossem imposições do corpo e aderindo, resignadas, a todas as contigências.
Magoava-o a facilidade com que outros recrutados dormiam tranquilamente um sono que era, para o egoísmo dele, quase uma afronta.
E sorria, depreciativamente, ao pensar no apostolado da democracia, nos defensores da igualdade humana, que ele combatera e o haviam atirado para o exílio. «Retóricos perniciosos! Queria vê-los ali, ao seu lado, para lhes perguntar se era com aquela humanidade primária que pretendiam restaurar o mundo. Via-se o que tinham feito! Tudo na mesma, sempre a mesma violência, a demagogia até. E ainda havia os que queriam ir mais longe no desvario, destruindo fundo os caboucos sociais, desmoronando uma obra construída e cimentada pela velha experiência dos séculos. E para quê? Para quê? Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o Mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida colectiva a beleza e a elevação que ela podia ter? Se a possuíssem, se tivessem sensibilidade, não estariam adaptados como estavam àquele curral flutuante. Mas não. Mas não. Era o seu meio e, se as transplantassem, ficariam tímidas, desconfiadas e murchas, como bichos selvagens nos primeiros dias de jaula. Ele e os seus, declarados inimigos da igualdade, defensores de élites, eram bem mais amigos dessa pobre gente do que os outros, os que a ludibriavam com a ideia duma fraternidade e dum bem-estar que não lhe davam nem lhe podiam dar. Só as selecções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade inquebrantável -- um rei e os seus ministros a mandarem e todos os demais a obedecer. O resto era fantasia maléfica de sonhadores ou arruaceiros. (...)
Cap. II, 32ª ed., pp. 46-47.
Nota: O extremar de posições é-nos dado pelos preconceitos da personagem principal, Alberto, um estudante de Direito, monárquico insurrecto de Monsanto, e por isso exilado; e um conjunto de gente ignara, acomodada naquele «curral flutuante» e conduzida em pura inércia de sobrevivência, um pouco o que acontece com os rebanhos. Não por acaso as noções de fraternidade e bem-estar, palavras-chave das doutrinas de revolução social, aparecem ligadas neste contexto de animalização dos futuros seringueiros, contrário, por isso, à sua intrínseca dignidade de homens. Este conceito de dignidade, geral e individual, é fundamental em Ferreira de Castro.

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