letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
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Jul 05
publicado por RAA, às 23:54link do post | comentar
-- Você, então, é monárquico mesmo?
-- Fui, fui.
-- Ah, aderiu à República?
-- Não. Hoje não me satisfaz nem uma coisa nem outra. Tenho aprendido muito nos últimos tempos. Sobretudo depois que vim para aqui.
-- Então?
-- Não sei. É um desejo que tenho de justiça para todos. Sem dúvida a Humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. Mas a evolução é coisa tão lenta e a vida de cada um tão pequena, que eu, às vezes, penso que a sede de justiça que há por toda a parte acabará por marchar à frente...
E como lesse a incompreensão no rosto de Juca:
-- Quando estamos fora da nossa terra, perdemos, quase sempre, a paixão política. Eu, hoje, sou diferente do que fui... Sinto que mudei bastante. Há muitas coisas que eu não dava por elas e agora dou. Penso que têm razão os que querem um mundo mais justo.
Cap. XIV, 32ª ed., p. 259.

publicado por RAA, às 23:28link do post | comentar
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publicado por RAA, às 03:04link do post | comentar
Alberto não lhe dava atenção. Prendia-o a carta materna, com a notícia de que os republicanos haviam, enfim, resolvido amnistiar os insurrectos de Monsanto.
[...]
«Os republicanos... Os monárquicos...» Tudo aquilo lhe soava imprevistamente a oco, longínquo e sem sentido. Arrefecera-lhe a paixão, as suas antigas ideias pareciam-lhe de tempos remotos, dum outro eu que se perdera e esfumara na lonjura. Examinava agora, a sangue-frio, a sua causa vencida e nenhum ódio guardava para os adversários que combatera anos antes. [...] Cada vez sentia menos o domínio das teorias que o haviam forçado a emigrar e parecia-lhe mesmo que sobre elas se iam condensando, de modo ainda mal definido, uma razão diferente e um sentimento de justiça nova, mais profunda e mais vasta. «Em muitas das suas expressões, a vida rastejava ainda, em tanto mundo e ali mesmo, à altura dos pés humanos; e não era decerto com os velhos processos, já experimentados durante dezenas de séculos, que ela poderia ascender aos níveis que o cérebro entrevia. Não era, decerto, no que estava feito, era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio.»
Cap. XII, 32ª ed., pp. 225-226.
O redentorismo libertário tem aqui uma eloquente expressão, com a rejeição da divisão política, superficial ou dogmática, em favor de uma ideia mais vasta de ascensão comunitária projectando-se num futuro: «era no que estava por fazer, que o homem viria a encontrar, talvez, o melhor de si próprio.» Sem messianismo, como às vezes se diz, mas antes com uma convicção profunda na capacidade de auto-superação do género humano: a libertação do homem tem de ser feita pelo próprio homem. Este humanismo não se queda em especulação de gabinete, mas abre-se à acção; é, por isso, voluntarista, reactivo, proactivo, revolucionário, libertário, anarquista.

publicado por RAA, às 01:58link do post | comentar
Os meus versos, que nunca foram bons, soarão agora muito pior aos ouvidos de V. Excelência, bem acostumados àquelas doces Poesias, as melhores que no seu género enobreceram o nosso bom Século de Quinhentos; mas, como neste papel faço a figura de poeta e de pretendente, contento-me de que V. Excelência, já que não pode achar doçura nos meus versos, ache justiça no meu requerimento; e espero do seu benigno coração que o homem infeliz ache hoje aos pés de V. Excelência aquele acolhimento que não deve esperar o mau poeta.
Memorial oferecido a D. Diogo de Noronha, depois conde de Vila Verde - Obras Selectas de Nicolau Tolentino
(edição de Augusto C. Pires de Lima)

publicado por RAA, às 01:42link do post | comentar
A mesa, que adivinhava lá dentro, com toalha branca, cristais e vinhos, enquanto ele comia na cozinha, ainda de mãos engelhadas pela água onde lavara as garrafas, provocava-lhe nova humilhação. [...] que pensaria o pai, se ainda vivesse, com aquele seu orgulho de velho general, que o lugar-tenente do rei exilado recebia de quando em quando, ouvindo-lhe respeitosamente as sugestões para a restauração da monarquia? Com uma severa ideia de classes, habituado a ser obedecido e servido, sem pensar nos que lhe obedeciam e serviam, que diria ele se o visse ali, àquela mesa, como outrora a criada lá de casa? A criada era um ser à parte. Ela e mesmo os homens que trabalhavam na quinta do Minho onde a família ia passar o Verão, aquela quinta, pequena mas tão simpática, que o pai herdara e depois vendera, quando os seus frequentes auxílios às conspirações monárquicas lhe criaram dificuldades de dinheiro, porque dava mais do que podia, mais até do que davam muitos que eram ricos».
[...] «Se não fosse a sua generosidade, sempre que se tratava de ressuscitar a monarquia, ou se houvesse aceitado gordas situações em bancos e poderosas companhias, à sombra da república, como alguns fizeram, o pai não teria deixado, ao morrer, apenas o seu montepio de austero militar e ele não se encontraria agora ali, a sofrer a vida dos miseráveis e dos escravos. [...]
De cara sem ruga de enfado, João levava agora a cafeteira e as chávenas para a sala. Seguindo-lhe os movimentos de servo, Alberto associou-os aos da velha criada da casa paterna, que sempre tolerara pacientemente os seus caprichos de filho único e sempre, até o fim, o tratara por «meu menino». Essa recordação incomodava-o agora, pela primeira vez e dum modo que até aí desconhecia: «Eu próprio tratava a Maria como um ser à parte».
[...]
Levantou-se também.
-- Não quer mais nada?
-- Não, senhor João. Muito obrigado. -- E sentiu uma súbita ternura pelo cozinheiro, como se através dele a veiculasse para a velha Maria, ainda ocupando o seu espírito.
Cap. IX, 32ª ed., pp. 189-191.
Dois aspectos importantes a sublinhar: o progressivo sentimento de fraternidade de Alberto para com os que se encontram numa situação adversa, como lhe está a suceder; a evocação do pai, velho general monárquico honrado, que, ao contrário de outros, não caiu no regaço da República triunfante: o regime de hoje acolhia e promovia os inimigos de ontem, indício de que as questões essenciais não estariam na natureza dos regimes.

publicado por RAA, às 01:05link do post | comentar
Extracção do látex na Amazónia
Posted by PicasaMuseu Ferreira de Castro

publicado por RAA, às 01:00link do post | comentar
Alberto recordava o diálogo com Juca e parecia-lhe que ele próprio fora mais humilde, na voz e nos gestos lisonjeiros, do que havia sido com o tio Macedo, mesmo com o Aragão, como se a miséria e os vexames padecidos lhe houvessem deteriorado a dignidade; e essa admissão agravou de repente o seu mal-estar.
Cap. IX, 32ª ed., pp. 180-181.

publicado por RAA, às 00:49link do post | comentar
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publicado por RAA, às 00:47link do post | comentar
O SONHO

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

--Partimos. Vamos. Somos.

Pelo Sonho É que Vamos

publicado por RAA, às 00:36link do post | comentar
Alberto e Firmino acercaram-se. Lourenço jazia sobre uma esteira, no pequeno terreiro, e do crânio fendido saía a massa encefálica. Mão piedosa havia-lhe limpo o rosto. Tinha os olhos abertos, como que parados num último assombro; e os curiosos mais propensos à afeição reconstituíam ainda, no último jeito dos seus lábios, a ternura, feita de ignorância e de renúncia, com que recebia os seringueiros em dia de sorte no lago. Aos pés, a mulher contorcia-se em altos gritos e sobre o peito a filha ocultava a boca soluçante.
Alberto quedou-se a observá-la. Era dez réis de gente, corpito por desabrochar, braços franzinos aos quais se ofereceria uma boneca -- e só um cérebro desvairado pensaria em que ela tinha também um sexo.
[...]
«Senhor juiz, senhores jurados...» A lembrança desses mudos exercícios retóricos, quando de noite caminhava sozinho nas ruas silenciosas que o levavam a casa, trouxera-lhe de novo a sua angústia de pária. Antegozava, então, o êxito de advogado jovem que se impõe rapidamente, que se imporia, sobretudo, na acusação dos grandes crimes, com adjectivos de violência e combate que melhor se ajustassem ao seu temperamento.
Agora, porém, haviam-se desfeito os sonhos de triunfo, tudo falhara e ele sofria como se as suas próprias ideias fossem realmente como o queriam os adversários -- um crime a espiar! Evocava o assassino, evocava o meio em que vivia e a imaginada eloquência morria-lhe no cérebro, deixando uma herança incómoda.
Cap. VIII, 32ª ed., pp. 165-166.
Um seringueiro, Agostinho, mata Lourenço, um tendeiro que se recusara a autorizar que aquele desposasse a sua filha de dez anos. Agostinho é uma personagem particularmente asquerosa, a mesma que pratica um acto de zoofilismo sexual com uma égua, descrito no capítulo anterior, o que não torna fácil a conclusão do narrador. À frente haverá maior clareza quanto ao que representa a justiça penal numa organização social desajustada.

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