letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
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Nov 05
publicado por RAA, às 23:30link do post | comentar | ver comentários (3)
Acabo de ver no Mezzo, por mero acaso, uma gravação de 94 da 5.ª Sinfonia do Tchaikovski, dirigida pelo Claudio Abbado. E como sucede sempre que ouço esta peça do grande russo fico num estado de grande exaltação interior, em especial no quarto andamento, arrebatado e portentoso, com aquele final impensável que não termina nunca. Qualquer coisa de único e genial -- tanto ou mais do que o Adagio lamentoso da sinfonia seguinte, a última por sinal, que termina também duma forma inusitada, em patético apagamento, como dias depois da sua conclusão se extinguiria o compositor dela, tristemente.
E pensar que em tempos umas nulidades críticas que, como de costume, não viam dois palmos à frente do nariz, acharam o bom do Piotr Ilich, acompanhado, de resto, do seu contemporâneo alemão Brahms, uns músicos dispensáveis. Parece que os pobres se aborreciam com a circunstância de alguma da música dele servir para bailes, se calhar de debutantes. Daí a classificarem-no em conformidade foi um passo...

publicado por RAA, às 15:55link do post | comentar
QUEIXA E IMPRECAÇÕES DUM CONDENADO À MORTE

Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.

Passo a passo os encontro no caminho
Que os Deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram
Com angústia e com lama.

Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.

Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.

Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu que me corto a mim mesmo no pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.

Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.

Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.

Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.

Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
De serem inúteis e ficarem vivos.

Liturgia do Sangue / Obra Poética

(edição de Francisco Melo)

publicado por RAA, às 15:54link do post | comentar

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