Amigo e Redactor:
-- Como V. sabe, devia fazer hoje a minha conferência no Casino. O assunto era: Os historiadores críticos de Jesus. Se tinha escolhido este assunto de preferência a outro, era simplesmente por ser aquele a que tenha mais particularmente aplicado os meus estudos. Nenhuma outra razão me levou a tratá-lo. Que era da crítica considerada como ciência, da sua aplicação especial à história de Jesus, e ao movimento que ele foi o iniciador que eu queria falar, era já público havia algumas semanas. O que porém se não sabia era o dia determinado em que esta matéria havia de ser apresentada publicamente. Os jornais, no entretanto, noticiaram há quatro ou cinco dias que hoje me pertencia ser o conferente, sem se esquecerem de apontar a matéria a tratar. Desde então todos os que se dizem meus amigos (com poucas excepções), e outros que se dizem interessados no meu bem-estar, julgaram que era do seu dever usar de quantos meios a imaginação lhes sugeria para me demover do meu propósito. Não lhes sendo possível desviarem-me do meu intento, por meio de argumentos, os quais confesso eram de nenhum valor, passaram a usar de ameaças, entre as quais apareceram, em primeira plana, que muitos estavam dispostos a usar de pugilato, como último argumento, se eu insistisse. Por quem esta guerra era especialmente movida não o pude saber. Um jornal falou das más disposições dos judeus a meu respeito. Eu, porém, que julgo tão inimigos das ideias cristãs os judeus como os católicos fanáticos, não sei a quem atribuí-la. Não obstante isto tudo, continuava a ser opinião minha e dos meus amigos que devia expor na minha conferência o resultado dos meus estudos, com tanta mais razão quanto por essa forma eu não saía fora dos estudos da minha predilecção.
Estava nestas disposições preparando-me para a conferência, quando vi hoje de tarde a cópia de uma portaria saída do Ministério do Reino, a qual proíbe a continuação das conferências. Se o intuito do autor da portaria é evitar que eu consiga propagar as ideias que tenho sobre Jesus e o Cristianismo, posso assegurar-lhe que o não consegue. Não o consegue porque me resta ainda a imprensa: o jornal e o livro. As ideias que tinha de expor ali sumariamente, dentro dos acanhados limites de uma conferência, poderei expô-las mais tarde, pela forma que mais adequada me parecer. Mas supunhamos que a ciência que tem ocupado espíritos como Strauss, Reuss, Scherer, Vacherot, Renan, Bunsen, Réville e outros não possa ter a sua livre manifestação entre nós e que eu seja obrigado pela imposição da força a calar-me, que modo mais eloquente haverá para demonstrar que as conferências tinham a sua razão de ser? O que faltará para provar que a liberdade de consciência e a liberdade de imprensa são palavras vãs entre nós e que este estado de coisas não deve continuar?
Semeiem e colham depois.
C/V. Lisboa, 26 de Junho de 1871.
De V. etc.
Salomão Sáragga.
In João Medina, As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal