Bruxelas, 9 -- Novº 1929
Minha querida Amiga
A sua carta, recebida hoje, não me surpreendeu. Contava que o seu estado de espírito fosse justamente o que ela me revelou. Perdoe-me esta audácia de me supor perspicaz. De certo, era tão fácil pressupor que você iria sofrer com a sua nova etapa! O que é inadmissível é que você fale da morte. Bonito tema para a filosofia e para a literatura. Mas não para se tomar a sério, como problema pessoal. O que você sofre em Genebra estou eu sofrendo em Bruxelas. É o mal da solidão que o esforço para nos adaptarmos agrava. Isso há-de passar-lhe, -- mal de nós se não passasse -- e a mim também. O que é preciso agora é conformarmo-nos ao meio o mais possível. Eu tenho sofrido. Perdi o apetite. Ao fim de um dia de courses a pé, de autobus e de eléctrico, estava doente. Caí em perfeito estado de indecisão e de anarquia de intenções. Mas vou contar-lhe o que fiz. Cheguei aqui anteontem ao meio-dia. (Antes que me esqueça: o seu guarda-chuva não estava no hotel; procurei-o por toda a parte, perguntei à criada, indaguei no restaurante, ninguém o tinha visto. Em todo o caso, para se tranquilizar, convém talvez que escreva ao gerente do café onde almoçávamos, para que lhe guarde o objecto, se ele aparecer; isso mesmo mo tinham já prometido. Mas convém insistir.) Fui imediatamente a um hotel, onde por 22 ou 25 fr. belgas de diária (não sei ao certo) me instalaram num quarto razoável, au sixième. Água corrente, chauffage, panorama sobre a cidade (que é extremamente animada e curiosa, sem o encombrement de Paris, nem o provincianismo duma Lisboa), e junto da praça da Bolsa, que é, num país capitalista, o coração do burgo. Mas isto não me alegra. Depois de instalado pus-me a procurar os Decrolys e outros bichos. Só almocei às 3 h. da tarde (talvez daí venha o meu malestar) e só às 4 1/2 (já noite cerrada, meu Deus de Portugal!), apanhei Decroly, num grupo de sábios, com a filha (que é médica), numa policlínica infantil. Apresentou-me logo a um médico de Estrasburgo, novo e musiqueiro, que aqui veio para ver pedagogias. Foi uma corvée. Ao almoço comera potée ardennaise, uma coisa imensa, boa e monstruosa que só acabei de digerir nessa noite. Passeei Bruxelas de automóvel com o Decroly, e depois só com o francês, a filha do Decroly e uma linda espanhola loira, de Barcelona, que está aqui muito bem há dois anos, como jardineira de infância, creio. Fomos para casa do Decroly, funcionou o gramofone (Bach, Albeniz etc.) e jantar. Eu estava arrazado e durante o jantar, que durou 3 horas, não abri quasi o bico para falar e mal para comer. Etc. Como vê, ainda não comecei a pensar... Logo que comece lhe escreverei. Tenho lido jornais. Já escrevi. Tenho saudades de muitas coisas e de si. Não espere o meu endereço para escrever. Eu lho darei na devida altura. É preciso dominar esses nervos e aceitar tudo com indiferença, mesmo a pedagogia e a falta de água no quarto. Não pense no meu dinheiro; governar-me-ei bem e a si os francos podem faltar-lhe. Não tenha saudades de quem é mau, e creia-me amigo e admirador devotado
Miguéis
In Irene Lisboa -- 1892-1958
(edição de Paula Morão)