«Diálogos inúteis» de João Gaspar Simões, em que o crítico pôs a nu a iniquidade política do momento, a mortandade em nome da Razão («Na Europa actual há homens que usam a lei da selva sem esquecerem as vantagens que podem colher empunhando a bandeira da Razão.» (46)); diálogos eivados dum pessimismo e duma desistência («O erro da humanidade presente quando se lhe põe o problema da felicidade é sempre o mesmo: confunde o espírito com a matéria. A felicidade é um factor moral, não uma exigência da carne.» (47)); enfim dum derrotismo que aparecia como inaceitável aos olhos de Casais Monteiro, conforme desabafa ao seu cunhado Alfredo Pereira Gomes:
«[...] o Régio e o Simões estão de há muito de "pé atrás" contra o "perigo político" para ela [presença]. E não querem ver que a atitude de independência anticonformista da "Presença" só podia manter-se na medida em que compreendessem que essa independência e esse inconformismo, NESTE MOMENTO HISTÓRICO, não podem ser qualquer objectividade (aliás irrealizável humanamente) pairando por cima dos... problemas da vida. Eles querem uma atitude de alheamento e de "supervisão" que é impossível em épocas como a nossa. [...] Foi o que se passou, por exemplo, com o Simões, escevendo o «Diálogo» sobre a felicidade: querendo pôr-se acima, querendo voar lá pelas alturas da pura ideia, acabou afinal por "fazer o frete" a todos quantos têm interesse em convencer os homens de que não vale a pena fazer nada, já que a felicidade... está no espírito! Como poderás calcular, esta é uma das causas visíveis da catástrofe [...].» (48)
Ao iniciar o novo e breve fôlego de 1939-40, Régio, em editorial não assinado, mostrava-se -- não obstante os futuros reparos de Casais -- ciente desse «terrível momento histórico de múltiplas tentativas de humilhação do espírito» e apresentava a revista como uma «fortaleza espiritual.» (49) Feitas as resenhas históricas da presença pelos dois directores então em conflito, ambos viriam a considerar que o ambiente político da época, cada vez mais extremado, não era propício à continuação da revista (50); o que, aliado ao cansaço de Régio (51), não deixava outra alternativa senão o fim dessa aventura intelectual de treze anos, que se dabatera entre dois fogos: o da (quantas vezes) calculada estetização da política, encorajada, quando não impulsionada pelo Estado Novo através do Secretariado da Propaganda Nacional; e o da vertigem da politização da arte, em que uma não menor frieza enquadrava os generosos entusiasmos juvenis de escritores e artistas neo-realistas. (52)
(46) João Gaspar SIMÕES, «Diálogos inúteis», presença, série II, n. 1, Lisboa, Novembro de 1939, p. 57.
(47) Idem, ibidem, n.º 2, Lisboa, Fevereiro de 1940, p. 128.
(48) Carta a Alfredo Pereira Gomes, já citada.
(49) [José RÉGIO], «presença reaparece», presença, série II, n. 1, Lisboa, Novembro de 1939, p. 3.
(50) Ver Adolfo Casais MONTEIRO, «A poesia da Presença» [1972], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, p. 142; João Gaspar SIMÕES, José Régio e a História do Movimento da «presença», p. 195.
(51) Ver carta datada de Portalegre, em 5 de Julho de 1940, ibidem, pp. 307-309.
(52) Sobre a aplicação dos conceitos benjaminianos de «estetização da política», ver Mário Vieira de CARVALHO, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Lisboa, Relógio d'Água, 1999, pp. 320-321, n. 57; exemplo da prática de estetização levada a cabo pelo SPN/SNI, ver Vera Marques ALVES, «Os etnógrafos locais e o Secretariado da Propaganda Nacional. Um estudo de caso», Etnográfica, vol. I, n.º 2, Lisboa, Centro de Estudos de Antropologia Social, 1997, pp. 237-257; sobre o enquadramento dos neo-realistas por parte do PCP, ver João MADEIRA, Os Engenheiros de Almas -- O Partido Comunista e os Intelectuais, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, p. 122 e passim.
Agosto-Setembro de 2000