O Egipto (1869/1926), de Eça de QueirósCádisDomingo.
Ontem dobrámos o cabo de S. Vicente sob um luar digno dos dramas de Shakespeare. O mar infindável, sereno, sem trevas, mas belamente escuro, tremia sob o grande raio luminoso da lua, como os antigos animais sob a carícia dos profetas.
[Das «Obras de Eça de Queiroz», publicadas pela Livros do Brasil, Lisboa, s.d. Na companhia do conde de Resende, o chevalier de Queiroz parte para Oriente a assistir à inauguração da grande obra de engenharia de Lesseps, o canal do Suez. Estas «notas de viagem» só foram editadas postumamente pelo primogénito do escritor, José Maria. Uma jóia da bibliografia queirosiana, da literatura de viagens, das nossas letras em geral. (Deu-mo o meu pai, em Março de 1988.)]
Fanga, de Alves Redol (1943) Antes da cheia grandeNaquela altura o meu pai fazia fanga e eu tinha começado a ajudá-lo no trabalho, embora pouco ou nada fizesse de proveito. Mas sempre me ia habituando, porque no campo, mal a gente deita fora as fraldas -- isto é um modo de dizer, pois julgo que nunca as usei, a supor pelo que vejo nos cachopitos --, começa logo na lida, até depois de os braços e as pernas não darem jeito a mexer-se.
[Da 4.ª edição, na velha e boa colecção "Os Livros das Três Abelhas», Publicações Europa-América, Lisboa, 1958. O meu primeiro contacto com a prosa límpida e viril de Redol. Muito melhor que o célebre Gaibéus (1939); não me surpreendeu nada que nas «Cinco notas sobre forme e conteúdo», António Vale (aliás, Álvaro Cunhal), tivesse destacado a Fanga, os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, como três dos melhores exemplos da literatura progressista (a expressão é minha) da época. Comprei-o em Dezembro de 1983].
A Farsa, de Raul Brandão (1903)-- Ai que ma levam!, ai que ma levam!Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...-- Ai que ma levam![Das «Obras Completas de Raul Brandão», no Círculo de Leitores, Lisboa, 1990. Comecei pelo teatro de Brandão: O Gebo e a Sombra, O Avejão, O Doido e a Morte; os "romances" de Brandão são únicos, e única é a sua voz. (Compreio-o em Agosto de 1998]