Servidão, de Assis Esperança (1946)Abriu os olhos estremunhada. A necessidade, feita hábito, de acordar cedo, perdera-a, ela, logo nos primeiros dias da sua adaptação aos horários e empecilhos daquela casa. Nessa manhã, porém, fazia dezassete anos. Se vivesse ainda com os pais, não haveria na sua expectativa lugar para dúvidas: receberia, prenda única de aniversário, os afagos e as lamurientas falas da mãe, penitente do mal da pobreza: -- «Nem uma blusinha te posso dar, filha!» -- Ali, seria diferente: conheceria como as pessoas ricas tratam quem está a seu cargo.
[na Guimarães & C.ª Editores, Lisboa, s.d. Prémio Ricardo Malheiros de 1946. Servidão é de todos os livros do autor que li -- e li quase todos --, o melhor de Assis Esperança. Acabei por escrever sobre as andanças e desventuras da bela e corajosa Leonor. Também por isso, tornou-se um dos livros da minha vida. Comprei-o em Julho de 1991 ]
Sinais de Fogo, de Jorge de Sena (1979)Ramon Berenguer de Cabanellas y Puigmal já era célebre, quando, por fusão de duas turmas, passou a ser meu colega no 6.º ano dos liceus. As suas calmas e sonhadoras extravagâncias, o seu ar de senhor de idade, o mistério de adulto de que rodeava a sua figura pequena e atlética, a sua profunda convicção de que, desde o século XII ou XIII, a Espanha devia à sua família o condado de Barcelona, as perguntas absurdas feitas com o ar mais convicto e ingénuo do mundo, com que ele era o terror dos professores inseguros, e o seu famoso sistema filosófico que tudo explicava e o dispensava, «graças ao controle das energias do cérebero», de estudar as lições (salvo em casos de última emergência), tudo isto não fazia dele um ídolo nem um chefe, mas um ente respeitadíssimo, apesar da ironia com que todos o apontavam.
[da edição no Círculo de Leitores, Lisboa, 1989. Outra das grandes narrativas portuguesas do século XX; um romance de formação, e em certa medida autobiográfico, que ficou incompleto e foi publicado postumamente. Compreio-o em Novembro de 1990.]
Tenda dos Milagres, de Jorge Amado (1970) No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo António Além-do-Carmo, na Baixa dos Sapateiros, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original.
[3.ª edição nas Publicações Europa-América, Mem Martins, 1973. O meu primeiro Jorge Amado, escritor marcante para várias gerações, grande escritor que alguns escolásticos patetas, em Portugal e no Brasil, acham que devem menosprezar -- de tal maneira que correu-se o risco de Amado morrer sem que lhe fosse atribuído o merecidíssimo Prémio Camões, o que não sucedeu graças aos membros portugueses do júri desse ano, honra lhes seja. Pedro Archanjo, protagonista do romance é uma esplêndida criação do autor d'Os Capitães da Areia, e é também um dos meus heróis da ficção ("Venha, meu bom", dizia ele, mestre de capoeira, em ar de irónico desafio a quem o antagonizava.) Comprei-o em Abril de 1982.]