Fernando Pessoa Esta a diferença essencial que os separava do
reaccionarismo pessoano e de outros afins. (39). Transcreva-se, a propósito, parte de uma carta de Régio enviada a Gaspar Simões, em 1935:
«Diga o que disser em contrário, o Almada é político. Embora seja um grande artista, é estreito e fosco de opinião quando se trata de julgar os que são diferentes dele. Tem o ódio dos judeus, o desprezo do pederasta António Botto, e, lá no fundo, a convicção de que sendo a presença uma revista politicamente avançada (ele assim a supõe... e talvez com razão, que diabo! Pois se não pode respirar hoje sem ser avançado!) não era mau que fosse substituída por outra cousa.» (40)
Mais do que a publicação da abundante colaboração de Pessoa, ortónimo e heterónimo (de Autopsicografia e Eros e Psique a Aniversário e Tabacaria), Almada, Saa e os póstumos (Sá-Carneiro e Ângelo de Lima); não obstante a sanção (como já Pessoa sancionara) da poesia de Botto e a sua inclusão nas páginas da folha; independentemente do acolhimento dado à iconoclastia do profeta Henoch e de A Virgem-Besta (encimando um página ímpar...) (41); mais audaz do que a impressão dessas transgressões à estética, à moral e aos bons costumes, o que de facto era subversivo, passados os anos e assente a poeira, era a ética da defesa intransigente da liberdade nesse período de 1927-40. Um extremo bom senso aliava-se a um extremo bom gosto. Da mesma forma que os primeiros modernistas se opunham a esse demo-liberalismo burguês e nivelador, os homens da presença, partilhando com aqueles antiacademismo e anticonvencionalismo, rejeitavam tanto o blochevismo como o fascismo e o nazismo.
(39) Tenho consciência de que classificar Pessoa como um reaccionário é simplificador. Parece-me mais operativa a figura do conservador «pré-revolucionário e anti-revolucionário» (à Edmund Burke) proposta por Raul MORODO, Fernando Pessoa e as «Revoluções Nacionais» Europeias, Lisboa, Editorial Caminho, 1997, p. 65.
(40) Portalegre, 12 de Outubro de 1935, apud João Gaspar SIMÕES, José Régio e a História do Movimento da «presença», p. 297.
(41) Raul LEAL (HENOCH), «A Virgem-Besta», presença, n.º 31-32, Coimbra, Março-Junho de 1931, p. 25, apresenta Cristo como fruto da prostituição de Maria com um centurião romano. Na narrativa autobiográfica de Miguel TORGA, A Criação do Mundo (2.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 196) é referido o escândalo suscitado pelo texto, com a devolução de praticamente toda a tiragem da Vanguarda (o título fictício da presença), e episódios decorrentes. O mais curioso é tudo se ter passado já na ausência de Adolfo Rocha (nome civil de Torga), com papel de algum relevo na cisão de 1930, a que me referirei adiante.
(continua)