Faz hoje cem anos que um garoto embarcou sozinho no porto de Leixões rumo a Belém do Pará. Chamava-se José Maria Ferreira de Castro, «tinha 12 anos, 7 meses e 14 dias», acabara de ler um número da
Ilustração e encetava um dos mais extraordinários percursos que um indivíduo pode realizar: acrescentar ao Mundo algo de si.
Sem que nada o sugerisse -- pelo menos à gente rude de onde ele provinha --, aquela criança começou a escrever num seringal da Amazónia, e quando de lá saiu para a capital paraense editou, logo que pôde, um romance ingénuo, que venderia em fascículos de porta em porta, intitulado Criminoso por Ambição. Corria o ano de 1916. Não era previsível que um filho de camponeses, apenas com a quarta classe, viesse a ser um dos maiores escritores portugueses do século XX, autor de, pelo menos, duas obras-primas -- A Selva (1930), um livro único, e A Lã e a Neve (1947), um exemplo das capacidades de um grande romancista no seu apogeu --, e de um punhado de livros relevantíssimos que, só por si, torná-lo-iam um dos romancistas mais consistentes do seu tempo: Emigrantes (1928), Eternidade (1933), Terra Fria (1934), A Tempestade (1940), A Curva da Estrada (1950), A Missão (1954) e O Instinto Supremo (1968), sem esquecer outros títulos, como A Volta ao Mundo (1940-44), um marco na secular literatura de viagens dos portugueses.
Ferreira de Castro foi um pioneiro na introdução em Portugal de uma literatura de intuitos revolucionários, com Emigrantes (1928). Mas foi muito mais do que isso: um psicologista fino, um estilista exigente, um autor atormentado pelo destino inexorável de todo o ser vivente, a morte, um ecologista avant la lettre, um defensor dos animais, um feminista, um libertário, um anarquista no mais puro e verdadeiro sentido da palavra.
Para quem ache os prémios importantes, deixo aqui registados os mais significativos: Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências (1934, atribuído a Terra Fria), Prémio Catenacci, da Academia de Belas-Artes de Paris (1965, atribuído a As Maravilhas Artísticas do Mundo), Grande Prémio Águia de Oiro do Festival do Livro de Nice (1970, conjunto da obra), Prémio da Latinidade (1971, em conjunto com Jorge Amado e Eugenio Montale); proposto ao Prémio Nobel de Literatura em 1951 (comissão liderada pelo académico dinamarquês Holger Sten) e em 1968 (com Jorge Amado, propostos pela União Brasileira de Escritores).
A sua obra continua a ser lida, reeditada, amada e redescoberta por muitos leitores, e como nunca se deixou contaminar pela propaganda do totalitarismo, isto é: nunca se esqueceu que o indivíduo é a entidade primeira numa sociedade livre e justa, não foi ainda desmentida pela História e pelas práticas dos homens.