letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
09
Set 11
publicado por RAA, às 01:25link do post | comentar
alterno raul brandão e ruy belo
transporte no tempo com el-rei junot
a melhor poesia em grande prosa 
grande poesia que toda a prosa deveria ter

morte e mais morte entre 
tanta vertigem de fim é
possível um frémito de 
felicidade em tanta morte 

só no meio da melhor prosa
e de tão grande poesia

04
Abr 11
publicado por RAA, às 23:55link do post | comentar
Relido Os Cus de Judas 28 anos depois (!) da primeira vez.  Esta, por exemplo: «A mulher dos amendoins, a que faltava o cotovelo esquerdo, montava a sua indústria de alcofas nos baixos da nossa varanda, e narrava à minha avó, em discursos verticais, de baixo para cima, as bebedeiras do marido, através de cuja violência explodiam capítulos de Máximo Gorki da Editorial Minerva.»* Quem se estreava a escrever desta maneira teria, forçosamente, de marcar a paisagem literária nas décadas seguintes.

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, 9.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993, p. 13.

22
Mar 11
publicado por RAA, às 00:55link do post | comentar | ver comentários (4)
«[...] Atravessavam a mãe-do-rio. / E ali era a barriga faminta da cobra, comedora de gente; ali onde findavam o fôlego e a força dos cavalos aflitos. Com um rabejo, a corrente entornou a si o pessoal vivo, enrolou-o em suas rôscas, afundou, afogou e levou. Ainda houve um tumulto de braços, avêssos, homens e cavalgaduras se debatendo. Alguém gritou. Outros gritaram. Lá, acolá, devia haver terríveis cabeças humanas apontando da água, como repolhos de um canteiro, como môscas grudadas no papel-de-cola. A estibordo de Sete-de-Ouros, foi o berro convulso, aspirado, de uma pessoa repelida à tona, ainda pela primeira vez. Mas isso foi bem a uns dez metros, e cada qual cuidava de si.»*
João Guimarães Rosa não é um autor fácil, menos ainda para o leitor português. A minha experiência com ele é Sagarana (1946), uma 7.ª edição maravilhosamente ilustrada por Poty. Eu diria que Rosa é, não um escritor para escritores, mas um escritor para leitores exigentes e persistentes A dificuldade inicial torna-se, progressivamente, em encantamento, e a compensação da leitura é única.

* João Guimarães Rosa, «O burrinho pedrês», Sagarana, 7.ª edição, Rio de Janeiro, livraria José olympio Editora, 1965, pp. 66-67.

03
Jan 07
publicado por RAA, às 22:56link do post | comentar
Gaspar Simões
Na «beleza emotiva» (19) procurada pelos poetas da presença não havia também lugar para o formalismo, para a habilidade dos vates de academia, para o tecnicismo, espartilho de muito razoável poeta que dele não logrou libertar-se. E se para Gaspar Simões -- o mais assertivo dos teóricos presencistas, cujas tiradas terão contribuído o seu quê para dar da revista a imagem duma certa irredutibilidade («a história da arte é a história da luta dos artistas com a realidade exterior» (20)), não se seguia -- pelo menos para os restantes co-directores -- que o artista se devesse encasular, umbilicalizar, torredemarfinizar. A poesia-pura, na acepção de Casais, rejeitando a submissão à forma e às escolas, não se afastava dos grandes problemas do homem -- fazia-o, porém, apenas «como expressão directa do seu debate interior.» (21)
(19) Helmut SIEPMANN, «Aspectos da poesia do segundo modernismo português», Revista da Faculdade de Letras, 5.ª série, n.º 16-17, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1994, p. 278.
(20) João Gaspar SIMÕES, «A arte e a realidade», presença, n.º 36, Coimbra, Novembro de 1932, p. 6.
(21) Adolfo Casais MONTEIRO, «Mais além da poesia pura», presença, n.º 28, Coimbra, Agosto-Outubro de 1930, p. 7.
(continua)

01
Jan 07
publicado por RAA, às 18:02link do post | comentar
«Nunca será inútil repetir que o que mais interessa numa obra de Arte... é a própria obra de Arte.» (12) Era o primado da arte que Régio defendia nesta sentença; ou como claramente, por outras e mais contundentes palavras, advertiria Casais Monteiro, a propósito da presença: «aqui não se servem causas: faz-se e trata-se de literatura e de arte.» (13) Por demais óbvias que estas posições pareçam, deve, no entanto, dizer-se que eram formuladas num contexto de hegemonia (de poder efectivo ou de influência na acção) de sectores não complacentes com a ideia de a expresão artística dever estar isenta de qualquer subordinação. Afirmações de independência que remetiam o autor presencista para as margens da oficialização cultural do Estado Novo, com uma política nacionalista e de tentativa de domesticação dos intelectuais, afastando-o também do neo-realismo oficial, emergente em meados da década de trinta. Seria, contudo, demasiado simplista e pouco rigoroso inferir que a publicação rejeitasse qualquer manifestação artística de tendência, quer «ascendente» ou «emancipadora» (para empregar termos de Plekhanov, posteriormente vulgarizados pela teorização neo-realista (15)) quer o seu oposto, alinhadamente reaccionária:
«Sim, a presença defende a arte pela arte, mas a arte pela arte da presença nada tem com o "egoísmo da torre de marfim do esteta ante o incêndio do vizinho ali defronte." A presença tem sido, nesse capítulo, ora muito mal compreendida, ora muito desconhecida, ora muito caluniada. Contra o que a presença luta e lutará, é contra as opressões que, ou dos lados da Alemanha e Itália ou dos da Rússia, pesam sobre a livre consciência do artista. A presença não admite que se imponham temas, estilos, modelos, opiniões, preocupações a um artista. Faça cada um o que melhor sabe, pode, quer -- e fará o melhor possível. Eis o que diz a presença, revoltando-se contra os excessos dos nazis e dos comunistas.» (16)
Toda a vida andou o poeta do Cântico Negro a afirmar que a arte podia ser tudo, desde que fosse arte, isto é, genuína, sincera, autêntica -- viva, numa palavra. Podia inclusive ser obra de propaganda: não se lhe recusaria uma categoria superior (17), desde que cumprisse o que devia ser a sua finalidade última: a «emoção estética». (18)

 

(12) José RÉGIO, «Uma peça de Pirandello (sei personaggi in cerca de auctore)», presença, n.º 7, Coimbra, 8 de Novembro de 1927, p. 7.

(13) Adolfo Casais MONTEIRO, «Nós, os porta-vozes de uma estética subjectiva até à desumanização...» [s. d.], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, p. 31.

(14) Ver Jorge Ramos do Ó, «Salazarismo e cultura», in Joel SERRÃO e A. H. de Oliveira MARQUES, Nova História de Portugal, vol. XII, Fernando ROSAS (coord.), Portugal e o Estado Novo (1930-1960), Lisboa, Editorial Presença, 1992, p. 409.

(15) «[...] o talento de qualquer verdadeiro artista é grandemente reforçado se for penetrado pelas grandes ideias emancipadoras do nosso tempo.» PLEKHANOV, A Arte e a Vida Social, trad. de Ana Maria Rabaça, Lisboa, Moraes Editoes, 1977, p. 72.

(16) José RÉGIO, carta a Roberto Nobre, Portalegre, Junho de 1936, Boletim, n.º 4-5, Vila do Conde, Câmara Municipal / Centro de Estudos Regianos, 1999, pp. 31-32.

(17) A propósito de A Revolução de Maio, de António lopes Ribeiro, o director da revista escreveu: «A propaganda e a arte podem não ser inimigas. Basta que profundamente se conjuguem na obra realizada a crença numa doutrina e a emoção artística.» José RÉGIO, «Cinema português», presença, n.º 50, Coimbra, Dezembro de 1937, p. 12.

(18) José RÉGIO, «Literatura livresca e literatura viva», presença, n. 9, Coimbra, 9 de Fevereiro de 1928, p. 1.

(continua)

 



30
Dez 06
publicado por RAA, às 23:27link do post | comentar
A presença verberou a literatura falsificada e a inanidade aflitiva do jornalismo; mas o seu combate tomou também, e essencialmente, uma feição afirmativa. Ao procurarem a autenticidade de artistas na realidade interior, ao pugnarem pelo primado da arte relativamente aos poderes formais e informais, ao defenderem a independência do autor em face de todas as pressões e ao cultivarem um saudável, mas de sua natureza instável, cultura de liberdade e inclusive de contradição, desencadearam uma tempestade que viria a escapar-lhes ao controlo, levando ao afundamento da revista -- essa «catástrofe» de que falou Casais Monteiro (10) --, cujos náufragos emergiriam como grandes solitários («Havia muito já que Robinson vivia / sozinho na sua Ilha; / era um Robinson só, não tinha Sexta-feira.» (11)). Pois se a arte esteve na génese da presença, algo porventura igualmente complexo e mais poderoso contribuiria decisivamente para o seu fim: hoje já é História; ontem era a política, de que alguns nem queriam ouvir falar. Razão porque, em meu entender, o trajecto da presença como fenómeno cultural, e não apenas literário, só poderá ser apreendido se não afastarmos desse percurso as contigências que lhe estiveram sempre a par: ditadura militar, advento e consolidação do Estado Novo, Guerra Civil de Espanha, II Guerra Mundial.
(10) Carta a Alfredo Pereira Gomes, Lisboa, 1 de Maio de 1940, in JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 25 de Janeiro de 1994, pp. 9-10.
(11) Francisco BUGALHO, «Fábula», presença, n.º 49, Coimbra, Junho de 1937, p. 10.
(continua)

28
Dez 06
publicado por RAA, às 18:56link do post | comentar

Porque razão continuamos a folhear a presença com um interesse e um deleite que não esmorece, passadas oito décadas sobre a publicação do primeiro número? A resposta reside naturalmente nos traços distintivos que a caracterizaram -- inovação e rebeldia, espírito crítico e acção doutrinária --, na qualidade de muitos dos colaboradores e, acima de tudo, dos quatro directores, que souberam interpretar o seu momento histórico -- e ser modernos. Como escreveria o maior deles, sobre outro assunto: a presença continha em si «a parte do futuro que já exist[ia] no presente.» (2)
E justo é que os individualizemos: José Régio (1901-1969), poeta, dramaturgo, romancista e ensaísta (sem esquecermos o memorialista, o diarista e também o artista plástico) revelou-se nesta dispersão fecunda um dos escritores mais completos do seu século; e seria sempre um autor de primeiro plano se houvesse cultivado apenas um daqueles géneros. João Gaspar Simões (1903-1981), apesar de novelista, foi o crítico por antonomásia, tantas vezes menosprezado enquanto tal, mas cuja obra é um monumento à persistência e ao ludismo literário ensaístico (literatura, literatura, literatura), pesem embora as parcialidades e os ódios de estimação mal disfarçados que lhe tolhiam por vezes a clarividência e granjearam alguns inimigos. (3) Branquinho da Fonseca (1905-1974), não apenas contista de excepção, como poeta muito apreciável sob o o semi-heterónimo António Madeira (4), um príncipe da cultura portuguesa (são concepção sua as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, ensaiadas em Cascais, na década de quarenta, quando foi conservador do Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães (5)) que deixou a marca do seu bom gosto expressa no grafismo da folha. Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) -- que assumiria a partilha da direcção em 1931 (7) --, poeta sofrível, crítico assertivo, importante ensaísta, docente universitário no seu exílio brasileiro.
À aventura iniciada em 10 de Março de 1927, materializada em oito páginas de papel pardo, vendida não se sabe a quem pelo preço de um escudo, agregaram-se jovens condiscípulos de Coimbra (Edmundo de Bettencourt, Francisco Bugalho, Saul Dias, Fausto José, António de Navarro, Alexandre d'Aragão e, marginalmente, Vitorino Nemésio e Miguel Torga, usando ainda o nome civil), ao lado da figura tutelar de Afonso Duarte, poeta mais velho (1885-1959), «colaborador da Águia e vagamente saudosista» (8), com um largo ascendente sobre quase todos eles (9), e, um pouco mais tarde, um jovem poeta portuense, dos maiores do segundo modernismo talvez aquele que ainda não foi reconhecido enquanto tal: Alberto de Serpa; a ela aderiu gente do primeiro modernismo: desde logo Fernando Pessoa -- que começou por ter como elo de ligação o presencista de Lisboa Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia --, com colaboração abundante e significativa, Almada Negreiros, Luís de Montalvor, Raul Leal, Armando Cortes-Rodrigues, Gil Vaz, Mário Saa e António Botto; até ela chegaram os poetas da «novíssima geração», neo-realistas como Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Fernando Namora e João José Cochofel.
(2) José RÉGIO, «Da geração modernista», presença, n.º 3, Coimbra, 8 de Abril de 1927, p. 1. Todas as citações e referências serão feitas a partir da edição fac-similada compacta em três volumes, Lisboa, Contexto, 1993.
(3) Para a pequena crónica ficaram os trocadilhos que lhe aplicaram o bilioso Jaime Brasil, chamando-lhe «o nosso Sainte-Boeuf», e o impiedoso Tomás Ribeiro Colaço, que aludiu a uma alegada fixação do crítico como a «proustatite de Gaspar Simões»...
(4) Embora António Branquinho da Fonseca tenha recuperado um apelido materno (Madeira), não parece descabido falar em, pelo menos, semi-heteronímia, dada a circunstância de a presença, por algumas vezes, ter apresentado poemas de Branquinho e Madeira, cujas possíveis distinções -- evidentes no plano formal -- caberia definir.
(5) Ver Branquinho da FONSECA, Relatório do Conservador do Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães (1943), Cascais, Câmara Municipal, 1997.
(6) Basta folhear a colecção da presença e verificar como o entusiamante grafismo se desvaneceu com a saída de Branquinho. No seu espólio -- depositado no Arquivo Histórico Municipal de Cascais --, conservam-se desenhos e vinhetas que imediatamente evocam a revista.
(7) Estreara-se na revista com um pequeno ensaio «Sobre Eça de Queirós», presença, n.º 17, Dezembro de 1928, pp. 1 e 11.
(8) «[...] é um poeta que, pela expressão, se tem de considerar moderno». João Gaspar SIMÕES, «Defesa da poesia moderna contemporânea» [1937], Novos Temas, Lisboa, Editorial Inquérito, 1938, p. 93. Segundo Casais, terá «desempenha[do], entre a geração do Orpheu e a da Presença, papel idêntico ao que teve a [poesia] de Pessanha, entre a do simbolismo e a do Orpheu». Adolfo Casais MONTEIRO, «A poesia da Presença» [1972], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, edição de Fernando J. B. Martinho, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1995, p. 127.
(9) «[...] nós os da Presença, descobridores do génio deste grande lírico.» João Gaspar SIMÕES, Retratos de Poetas que Conheci, Porto, Brasília Editora, 1974, p. 33.
(continua)

26
Dez 06
publicado por RAA, às 22:44link do post | comentar

O recente centenário do nascimento de Lopes-Graça fez-me ir à gaveta retirar um estudo com meia dúzia de anos destinado a uma colectânea de correspondência com os «presencistas», grupo a que, por direito próprio, o autor de Música e Músicos Modernos pertence. Ele aqui fica, em primeira mão.
Liberdade de criação e expressão, recusa de subordinação a tudo que não fosse a verdade do artista, consequente afirmação da sua independência em face dos poderes instituídos -- condição necessária para a autenticidade da criação como manifestação do que de mais genuinamente o artista traz em si --, rejeição do academismo, do formalismo e da contrafacção: este, a traços largos, o programa da presença, revista literária que se publicou em Coimbra, entre 1927 e 1938, com uma segunda série saída em Lisboa, em 1939 e 1940.
Com a Seara Nova, de Raul Proença, Jaime Cortesão, Câmara Reis e António Sérgio, entre outros, iniciada em 1922 -- embora não descurando a literatura, procurava antes de tudo exercer um pedagogismo cívico que não cabia nos propósitos da folha coimbrã --, apresentam-se-nos ambas como as principais referências éticas da vida cultural portuguesa, no que a revistas culturais respeita, entre as duas guerras mundiais. Não por acaso, de resto, se constata a preeminência de ambas, cujas afinidades na respectiva área de intervenção teríamos gosto em explorar, não fosse tal confronto comprometer a razoabilidade das dimensões da apresentação deste epistolário. (1)
(1) Recorde-se a funda admiração que Régio consagrou a António Sérgio, e também a sua importante colaboração na Seara, com destaque para as «Cartas do nosso tempo», dadas à estampa na década de 30 (ver Isabel Cadete NOVAIS, «Colaboração de José Régio em publicações periódicas», Boletim, n.º 2, Vila do Conde, Câmara Municipal / Centro de Estudos Regianos, 1998, p. 5.)
(continua)

17
Dez 06
publicado por RAA, às 19:02link do post | comentar | ver comentários (4)
Quando há pouco mais de duas décadas me cruzei pela primeira vez com Fernando Lopes-Graça, no Teatro Gil Vicente, em Cascais, num comício de apoio à candidatura de Salgado Zenha à Presidência da República, estava longe de imaginar que viríamos a ter um breve, mas intenso, relacionamento, poucos meses antes da sua morte.
O compositor havia decidido legar o seu riquíssimo espólio ao município de Cascais, onde vivia, destinado à Casa Verdades de Faria (hoje, Museu da Música Portuguesa), onde já se encontravam a magnífica colecção de instrumentos do seu velho amigo e colaborador Michel Giacometti, entretanto falecido, bem como a sua biblioteca especializada. Por razões profissionais, fiz parte da equipa que concretizou o desejo do autor do Canto de Amor e de Morte.
Encontrei-me com ele na Primavera de 1994, no «Marégrafo», onde almoçámos. Lopes-Graça era, para mim, a figura mítica do criador, popularizado pelas Heróicas, mas também do esteta, do teorizador e um nobre exemplo de resistente à ditadura salazarista. Dirigi-lhe a palavra com alguma emoção. Para facilitar o diálogo entre dois estranhos, levei-lhe uma fotografia da década de 50, onde ele aparecia conversando com Ferreira de Castro e Roberto Nobre.
A simpatia mútua surgiu de pronto, e naquele almoço muito se falou de literatura (Graça era um grande escritor, embora nunca assumisse essa condição) e gerações intelectuais de que ele era um dos últimos representantes. Homem da presença e da Seara Nova, fizera a ponte com o neo-realismo, pontificando n'O Diabo e na revista Vértice.
Entre mil-e-uma estórias que alimentaram o prândio -- enquanto cravava os cigarros que lhe estavam proibidos pelo médico e que sistematicamente partia ao meio, para prolongar um prazer que satisfazia como um adolescente que fumasse às escondidas -- , falámos obviamente de Ferreira de Castro e Roberto Nobre -- com quem escrevera um artigo para a Seara, sobre o filme Fantasia (1940), uma das obras-primas de Walt Disney --, de Manuel da Fonseca e José Blanc de Portugal; disse-me que estava a reler o Levantado do Chão, de José Saramago; passámos pelo 25 de Abril, por Picasso, por Stravinsky -- tanta coisa que a minha meória não pôde reter tudo.
Semanas mais tarde, quando visitou a Casa Verdades de Faria, no Monte Estoril, voltámos a falar animadamente dos seus companheiros de geração e dos intemporais confrades que com ele partilharam o destino da escrita -- porque, não o esqueçamos, Lopes-Graça cultivou superiormente a prosa, sendo um notável ensaísta.
Lembro-me de dizer-lhe como lamentava o esquecimento a que estava votado Tomás Ribeiro Colaço -- então uma recente descoberta minha --, monárquico liberal, escritor exilado no Brasil onde veio a morrer, apátrida do Portugal de Salazar, director, nos anos 30, de um importante semanário literário, o Fradique. Daí pulámos para o Eça, pois para além da evocação jornalística do semi-heterónimo Carlos Fradique Mendes, parecia-me haver uma nítida influência do romancista d'Os Maias em Colaço, desde logo por uma implacável ironia de que ambos se serviram. Graça veio, evidentemente, defender a superioridade de Camilo sobre Eça, e também, já no seu século XX, de Aquilino. O mesmo já se não passou com Fialho, para minha surpresa; pareceu-me que o detestava.
Estive na sua casa da Parede pelo menos duas vezes. Senti-me extasiado diante das suas estantes a abarrotar, reveladoras também de um fino gosto bibliófilo. Senti que lhe agradou a avidez com que me lancei aos livros dos escritores portugueses, quase todos com dedicatórias -- e, alguns deles, com que dedicatórias! «Aí estão os autores portugueses», disse-me com aquela entoação das pessoas que não só lêem os livros, como gostam de os ter junto de si, mirara-lhes de longe as lombadas, ir ao pormenor do cólofon.
E lá estavam, copiosos, os volumes de Aquilino, Ferreira de Castro, José Gomes Ferreira, José Régio, Vergílio Ferreira, Carlos de Oliveira, a primeira edição de Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, na editora Sírius, com capa de Álvaro Cunhal...
«O maestro tem aqui preciosidades!...», disse-lhe com evidente entusiasmo. «Ora diga lá, do que aí está, o que acha interessante», retorquiu ele, claramente para experimentar o rapaz com idade para ser seu neto e que lhe invadia em casa para, no cimo de um escadote, remexer as suas estantes, e que, ainda por cima, tinha opiniões sobre escritores que haviam sido seus amigos, privado com ele, trabalhado com ele. «Vá, diga lá a que escritores, dos que aí estão, acha o senhor interesse», insistiu. Aquele senhor, sem uma ponta de hostilidade, mas irónico -- pelo menos assim o senti --, punha-me claramente à prova. «Bem...», hesitei no meio de tantas possibilidades, e decidi jogar logo pelo seguro, «...o Carlos de Oliveira, por exemplo...» E lá começámos à conversa, gostosa e demoradamente.
Inesquecível uma tarde em que o rádio, sintonizado evidentemente na Antena 2, transmitia o Concerto para violoncelo de Dvorak, gravado não sei quando no Coliseu e dirigido por Pedro de Freitas Branco, Lopes-Graça sentado tendo à frente o seu Bechstein, por vezes a trautear uma passagem, e eu a folhear-lhe as prateleiras...
Muitas foram as estórias que ele me contou, por vezes repetiam-se, mas era sempre um prazer ouvi-lo. Episódios do seu exílio em Paris, nos anos 30, os contactos que tivera com Bernardino Machado («um picuinhas a rever textos») e Jaime Cortesão, que considerava ser um pedante, embora não lhe quisesse apoucar a grandeza. E saltávamos de nome em nome: Vitorino Nemésio, grande amigo com quem se incompatibilizou depois da Revolução, Jorge de Sena, homem com «um feitio terrível», mas «um homem superior».
Morreu umas semanas depois. O pouco que privei com ele não chegou para me fazer sentir seu amigo. Consegui admirá-lo pessoalmente, mesmo já diminuído. Comoveu-me a sua ostensiva militância comunista, que a todo o momento procurava vincar, sabendo eu que esse não fora um percurso sem escolhos. Enquanto vulgaríssimo melómano -- gosto de alguma da sua música, não aprecio outra. Quase que por acaso, quase, revejo estas notas tomadas num caderninho, em 5 de Janeiro de 1995, ao som da sua música. Escolhi o Concertino para Violeta e Orquestra, de 1962, incluído no primeiro disco de Lopes-Graça que comprei, e que para sempre evocará o meu encontro com ele, à beira do fim.
Foto de Augusto Cabrita

18
Nov 06
publicado por RAA, às 16:45link do post | comentar | ver comentários (2)
Ando com vontade de ler o Gorki.

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