letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
31
Jul 06
publicado por RAA, às 19:22link do post | comentar
PRETÓRIO

-- O poeta é aqui, neste senhor?

-- Digo sim ou digo não
Quando exibo a minha dor:
Esta ferida de céu
Que me chega ao coração?

E quando o sangue não corre
Nem de cima para baixo,
Nem de baixo para cima?

E quando ponho na mesa
Toda a restante riqueza:
A hora colada à torre;
O fogo preso no facho;
O sonho gasto na rima?

Digo sim ou digo não?

Sete Luas / Líricas Portuguesas - 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

27
Jul 06
publicado por RAA, às 18:44link do post | comentar
A UMA RAPARIGA

Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre os lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada da vida que fascina,
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste duma flor!...

Charneca em Flor / Líricas Portuguesas, 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

06
Jul 06
publicado por RAA, às 19:45link do post | comentar
O BALOIÇO

Na minha quinta, em pequeno,
Tive um inquieto baloiço
Que ainda o vejo sereno
E nele os meus gritos oiço.

Longas horas baloiçava
Meu frágil corpo menino.
E ora subia ou baixava
Num constante desatino.

Nesse baloiço, à distância,
Chama por mim minha infância
E eu chamo p'lo que passou.

E sem haver quem me oiça
O baloiço me baloiça
Entre o que fui e o que sou.

A Lenda do Rei Boneco / Líricas Portuguesas - 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

03
Jul 06
publicado por RAA, às 20:02link do post | comentar
(SONETILHO 3.º. DE VIOLANTE DE CISNEIROS)

Quando a paisagem recolhe
Seus olhos, na tarde calma,
É como alguém que se olhe
Com olhos de alma p'ra alma.

Se a paisagem esmorece,
Fechando os olhos doridos,
É como alguém que perdesse
A noção dos seus sentidos.

Não vê... não ouve... não fala...
Paisagem de si ausente,
Fico-me ausente de olhá-la.

Caminho! Noite cerrada!
Sou a Paisagem de ausente
Toda em mim transfigurada.

Cantares da Noite / Líricas Portuguesas, 2ª. Série
(edição de Cabral do Nascimento)

15
Abr 06
publicado por RAA, às 01:06link do post | comentar | ver comentários (2)
IDEIAS

Honra: Brio: Dignidade:
Onde estais? Quem vos preza?
--Não posso viver pobre. A frialdade
Que me dá toda a pobreza!

Lembram-me bichos, carochas, centopeias,
Musgo, paredes húmidas, bolores,
Ao pensar na pobreza! -- Ideias.
E causam-me suores.

In Líricas Portuguesas, vol. 2
(edição de Cabral do Nascimento)

29
Mar 06
publicado por RAA, às 19:37link do post | comentar
RELÍQUIA

Era de minha mãe: é um pobre xale
Que tem p'ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
Da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
Deixo os meus dedos p'ra senti-la ainda;
E Ela vem, é ela que me abraça,
Fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe mais perto, mais pertinho,
Que eu sinto quando toco o velho xale
Que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
Sinto ao tocá-lo como alguém que embale
E beije a minha sede de amor puro.

Poesias / Líricas Portuguesas, 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

10
Mar 06
publicado por RAA, às 20:16link do post | comentar
VENDO A MORTE

Em tudo vejo a morte! E, assim, ao ver
Que a vida já vem morta cruelmente
Logo ao surgir, começo a compreender
Como a vida se vive inutilmente...


Debalde (como um náufrago que sente,
Vendo a morte, mais fúria de viver)
Estendo os olhos mais avidamente
E as mãos p'ra a vida... e ponho-me a morrer.

A morte! sempre a morte! em tudo a vejo,
Tudo ma lembra! E invade-me o desejo
De viver toda a vida que perdi...

E não me assusta a morte! Só me assusta
Ter tido tanta fé na vida injusta
...E não saber sequer p'ra que a vivi!

Comigo / Líricas Portuguesas 2ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

25
Fev 06
publicado por RAA, às 00:56link do post | comentar | ver comentários (4)
VILANCETE

Como quereis que me ria,
Corpo de ouro, se vos digo
Que trago a morte comigo?

Vir um dia a apodrecer,
Se é destino de quem vive,
Outro destino não tive
Desde a hora de nascer:
Como não hei-de sofrer,
Corpo de ouro, se vos digo
Que trago a morte comigo?

Na dor de todo o momento
Meus dias tristes se vão,
E só tenho a podridão
Em paga do sofrimento:
Sombra de contentamento,
Como a terei se vos digo
Que trago a morte comigo?

Nada / Líricas Portuguesas, 2.ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

15
Fev 06
publicado por RAA, às 22:03link do post | comentar
ESTES VERSOS ANTIGOS

Estes versos antigos que eu dizia
Ao compasso que marca o coração
Lembram ainda?... Lembrarão um dia...
--Nas memórias dispersas recolhidas
Sequer, na piedosa devoção
De algum livro de cousas esquecidas?
--Acaso o que ora canta... vive... existe
Nunca mais lembrará -- eternamente?
E, vindo do não ser, vai, finalmente,
Dormir no nada... majestoso e triste?

Líricas Portuguesas - 2ª Série
(edição de Cabral do Nascimento)

09
Fev 06
publicado por RAA, às 20:03link do post | comentar
DROMEDÁRIO

Sob o crescente de lua,
A alma estagna. O céu consente
(Sem o sonhar ou saber)
Que em minha alma possa haver
Um tão possível oriente.

É-me o sonho o que é negado.
É-me verdade o que crio.
Minha alma é seco areal
E no fundo olhar sorrio
Rumos de febre e coral...

E tu, ó dama da noite
Milenária, que halo te cerca
De enigma a vigília pura?
Dons de unânime ventura:
Morre o sonho quem te perca...

Verdade ou sonho? Que importa
Ao morto olhar o rumo incerto.
Eu sigo o sonho (e cismando!)
Do dromedário pisando
Silêncios do meu deserto...

Líricas Portuguesas - 2ª. Série
(edição de Cabral do Nascimento)

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