Amigo
Vale de Lobos, 24 de Maio [1867]
Estive em Lisboa poucos dias e disseram-me aí que o am.º fora p.ª Évora. Escrevo pois para Évora, a Deus e à ventura.
Quisera ter-lhe falado para lhe dizer uma resolução que tomei e que tomei fria e reflectidamente, porque era ao mesmo tempo um preceito da minha consciência, e uma necessidade para este modo de viver que adoptei para os anos, não serão muitos, que me restam de vida.
Tenho parentes e sou só. Os parentes tratam de si. Não tenho uma irmã, uma sobrinha, uma mulher que olhe por mim e pela casa que, apesar de pequena, tem que governar. Sabe, porque tem sido lavrador. A criada de campo que tenho é incapaz de me olhar por uma camisa ou por umas meias. A antiga criada de minha mãe, que em Belém me tratava dessas coisas, não pode deixar o marido com 84 anos para me seguir aqui. Na doença não tinha quem tratasse de mim; e eu já perdi a esperança de deixar de ser valetudinário. Amancebar-me aos 57 anos publicamente era ridículo e mau, e o resultado pouco seguro.
Resolvi casar. Tive aos 26 anos uma destas paixões que todos temos naquela idade, mas havia em mim outra mais poderosa, a das ambições literárias. Os meus amores foram com a irmã do Meira, D. Mariana Hermínia. A paixão literária venceu a outra. Tive a coragem de lhe sacrificar esta. Com a minha modesta fortuna não podia fazer filhos e livros ao mesmo tempo. Era necessário ser uma espécie de frade, menos o convento. Falei, pois com franqueza a minha actual mulher, que então era uma cabeça algum tanto romanesca. As mulheres são capazes de actos de abnegação que seriam para nós impossíveis. Já havia rejeitado por minha causa um casamento vantajoso que a família lhe arranjara com um primo, mas à vista das minhas declarações, foi mais longe: aceitou uma posição ambígua, sujeita a comentários e calúnias, sem soltar um queixume, sem a menor quebra durante trinta anos de uma dedicação e amizade ilimitadas. Confesso-lhe que, neste ponto, eu que me parece estar curado de todas as vaidades, ainda tenho vaidade nisto.
Aqui tem o meu amigo os elementos materiais e morais para avaliar o acto que pratiquei. Conheço-o bastante para saber que o há-de aprovar.
Estas explicações são apenas para meia dúzia de amigos íntimos. Para o resto do mundo a explicação é mais curta: casei porque tive vontade disso.
As coisas rústicas por aqui não vão bem. Os trigos são abaixo de medianos, vinho há pouco, e azeite pode-se dizer que nenhum.
Arranja-me uma pouca de mera, e diz-me aonde ma manda pôr em Lisboa?
Recomendações ao dr. António Miguel, que é um dos poucos carácteres deste terra que eu admiro.
Amigo
Herculano
In João Medina, Herculano e a Geração de 70
extraída de
Luís Silveira, Cartas Inéditas de Alexandre Herculano a Joaquim Filipe de Soure