letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
21
Ago 06
publicado por RAA, às 02:49link do post | comentar














José Rodrigues Miguéis Archives

20
Ago 06
publicado por RAA, às 23:29link do post | comentar
Bruxelas, 9 -- Novº 1929

Minha querida Amiga

A sua carta, recebida hoje, não me surpreendeu. Contava que o seu estado de espírito fosse justamente o que ela me revelou. Perdoe-me esta audácia de me supor perspicaz. De certo, era tão fácil pressupor que você iria sofrer com a sua nova etapa! O que é inadmissível é que você fale da morte. Bonito tema para a filosofia e para a literatura. Mas não para se tomar a sério, como problema pessoal. O que você sofre em Genebra estou eu sofrendo em Bruxelas. É o mal da solidão que o esforço para nos adaptarmos agrava. Isso há-de passar-lhe, -- mal de nós se não passasse -- e a mim também. O que é preciso agora é conformarmo-nos ao meio o mais possível. Eu tenho sofrido. Perdi o apetite. Ao fim de um dia de courses a pé, de autobus e de eléctrico, estava doente. Caí em perfeito estado de indecisão e de anarquia de intenções. Mas vou contar-lhe o que fiz. Cheguei aqui anteontem ao meio-dia. (Antes que me esqueça: o seu guarda-chuva não estava no hotel; procurei-o por toda a parte, perguntei à criada, indaguei no restaurante, ninguém o tinha visto. Em todo o caso, para se tranquilizar, convém talvez que escreva ao gerente do café onde almoçávamos, para que lhe guarde o objecto, se ele aparecer; isso mesmo mo tinham já prometido. Mas convém insistir.) Fui imediatamente a um hotel, onde por 22 ou 25 fr. belgas de diária (não sei ao certo) me instalaram num quarto razoável, au sixième. Água corrente, chauffage, panorama sobre a cidade (que é extremamente animada e curiosa, sem o encombrement de Paris, nem o provincianismo duma Lisboa), e junto da praça da Bolsa, que é, num país capitalista, o coração do burgo. Mas isto não me alegra. Depois de instalado pus-me a procurar os Decrolys e outros bichos. Só almocei às 3 h. da tarde (talvez daí venha o meu malestar) e só às 4 1/2 (já noite cerrada, meu Deus de Portugal!), apanhei Decroly, num grupo de sábios, com a filha (que é médica), numa policlínica infantil. Apresentou-me logo a um médico de Estrasburgo, novo e musiqueiro, que aqui veio para ver pedagogias. Foi uma corvée. Ao almoço comera potée ardennaise, uma coisa imensa, boa e monstruosa que só acabei de digerir nessa noite. Passeei Bruxelas de automóvel com o Decroly, e depois só com o francês, a filha do Decroly e uma linda espanhola loira, de Barcelona, que está aqui muito bem há dois anos, como jardineira de infância, creio. Fomos para casa do Decroly, funcionou o gramofone (Bach, Albeniz etc.) e jantar. Eu estava arrazado e durante o jantar, que durou 3 horas, não abri quasi o bico para falar e mal para comer. Etc. Como vê, ainda não comecei a pensar... Logo que comece lhe escreverei. Tenho lido jornais. Já escrevi. Tenho saudades de muitas coisas e de si. Não espere o meu endereço para escrever. Eu lho darei na devida altura. É preciso dominar esses nervos e aceitar tudo com indiferença, mesmo a pedagogia e a falta de água no quarto. Não pense no meu dinheiro; governar-me-ei bem e a si os francos podem faltar-lhe. Não tenha saudades de quem é mau, e creia-me amigo e admirador devotado
Miguéis
In Irene Lisboa -- 1892-1958
(edição de Paula Morão)

29
Jul 06
publicado por RAA, às 20:02link do post | comentar









José Rodrigues Miguéis Archives

publicado por RAA, às 19:52link do post | comentar
347 East 17th St.
New York City
Sábado 29 de Novembro, 1947
Querido Mário Neves:
Aqui vai o resto (aliás começo) do Natal do Dr. Cosby, com as minhas bençãos apostólicas para VER & CRER. Oxalá chegue a tempo. Telegrama recebido ontem de manhã, e atirei-me ao trabalho. Cortei, esfacelei, transpus, rangi os dentes. Aí vai. Só lhes suplico que revejam com cuidado. De longe não posso fazer mais! Já sabe o carinho que tenho pela revista e por vocês. Se mais pudesse mais faria. -- Recebi com surpresa há 3 dias o número de Setembro, onde vejo um artigo sobre a América: nem posso crer! Lápis cuidadoso, certeiro. Já lhe mandarei outras coisas, quando houver ensejo.
Sendo V. a única pessoa com quem mantenho uma correspondência frutífera, ainda um dia lhe hei-de confiar outros manuscritos, a que não sei o destino que hei-de dar. Quero que saiba que nem toda a minha literatura é «mórbida»... Mas em Portugal creio que até o humorismo é acolhido com um franzir de testas talmúdicas, ideológicas, de padres-mestres possuídos de teorias e teoremas -- mais do que de vida e senso criador. Porque é que eu não faço outras coisas? -- Porque não posso pôr nelas a verdade e a sinceridade que ponho nestas, e a meia-verdade é-me odiosa. A meia-verdade e a secura, a ausência de verdadeiro tutano é humor nas obras. Fatigam-me e aterram-me as coisas nossas que leio: caracteres falsos, de papelão, falando uma linguagem que não existe, etc. Laissons çà!
Você acha que se cada um dos 8000 leitores do V&C pagasse UM TOSTÃO pela minha história -- a quinta parte do que paga por uma zona no eléctrico, e do que paga pelo Diário de Notícias -- pagaria de mais? Pois bem, se cada um pagasse a quarta parte de UM TOSTÃO (quantia impensável!) eu receberia 200 escudos, ou seja quatro dólares: com o que quase poderíamos comer um jantar de família num restaurante popular. E ainda me dizem que não vale a pena ser Escritor! Houve um rei shakespeareano que bradou «Dou o meu reino por um cavalo!» O escritor português pode gritar (se ainda tiver forças) «A minha vida por um almoço!» -- Mas será melhor a vida do director-proprietário?... (Só o telegrama lhe custou o valor de um artigo!)
Não sei que mais tinha a dizer-lhe. Fica para a próxima. Podendo ser, mande-me o conto (cortado da revista) por avião, para que eu o receba mais cedo, como carta. Os aviões não transportam matéria impressa, e por navio tudo leva meses!
Abraços muitos e colectivos
Miguéis
Corte sem hesitar o que entender!
M.
In Mário Neves, José Rodrigues Miguéis -- Vida e Obra

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