letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
06
Ago 06
publicado por RAA, às 15:17link do post | comentar | ver comentários (4)
Porto, 13 de Abril de 1933
Meu Ex.mo e presado Amigo e Colega
Não sei como pedir-lhe desculpa de só agora lhe responder. O seu antigo professor, que, embora sempre fraco, se deu largamente aos seus alunos durante longos anos -- ensino desde os 16, e tenho 54 -- encontra-se agora bastante esgotado de forças, que mal lhe chegam para arrastar a grilheta de ganhar o pão, e, sobretudo, de prover à educação dum filho. Depois de 27 anos de serviço dedicado, o Estado lança-o à margem, e até já lhe negou, com grande injustiça, a reforma. Mas o mundo é assim, e tudo isto só vem como desabafo e para justificar a deplorável demora desta carta.
Transmiti a minha filha os seus agradecimentos, e, sem desconhecer que ela foi zelosa em lhe prestar esse pequeno serviço, concordo com ela que as manifestações de reconhecimento por parte de V. Ex.ª já excedem bastante a importância do que ela fez.
Muito e muito lhe agradeço a oferta dos seus trabalhos, alguns dos quais já conhecia um pouco, e apenas não mais por saírem da minha especialidade. Alem do seu valor intrinseco, constituem uma boa semente de labor caracterizadamente europeu, que, esperemo-lo, ha-de germinar um dia em farta e redentora seara. Por agora são ainda as hervas ruins, de enganosa florescência estéril, que abafam, entre nós, as obras sérias. Nem ha crítica nem opinião culta que saiba e seja capaz de distinguir o trigo do joio. Mas isto de procurar fazer obra séria é um vício que se adquire e perdura, embora só nos seja nefasto...
Senti sinceramente as últimas e grandes contrariedades da sua vida. O caso é de todos os tempos, e consubstancia-se no símbolo cristão: quem diz verdades, sofre perseguições. Ou, numa comparação mais actual: o medico radiologista sofre por ver amputações, mas pode consolar-se pensando que o rádio ou os raios X sempre fizeram bem aos doentes...
Ainda V. Ex.ª, segundo creio, tem saude e vigor, e está relativamente novo; agora veja o meu caso, embora a minha obra seja modesta: cerca de 50 anos, e quando eu julgava sentir que certas qualidades de professor e de investigador estavam justamente amadurecendo; quando o meu pequeno nome, sem reclamos para que não tenho geito, já ia sendo registado no estrangeiro -- cortam-me a carreira, brutalmente, e vão-me assassinando a fogo lento...
Deseja-lhe todas as prosperidades -- aquelas que mais presa -- o seu
antigo professor, e colega amigo e muito grato
Luiz Cardim
Correspondência de Rodrigues Lapa
(edição de Maria Alegria Marques, Ana Paula Figueira Santos, Nuno Rosmaninho, António Breda Carvalho e Rui Godinho)

publicado por RAA, às 15:16link do post | comentar

02
Abr 06
publicado por RAA, às 16:09link do post | comentar
Querido Amigo:

F.º de Peniche
28.VIII.40

Homem! há muito que me não acontecia ler um livrinho, de cabo a rabo, sem outras interrupções que não fossem as da minha nova disciplina de presidiário. E esse foi o volume que V. teve a gentileza de enviar-me sobre o Eça.
Comecei-o a ler à tarde, ou melhor à tardinha, e às 10 horas da noite ainda o lia com sofreguidão, quando a mão da Autoridade, girando o comutador, ceifou o enlevo com que saboreava a sua leitura. Hoje, mal luziu a alva, e a corneta me sacudiu da tarimba, foi para lavar o focinho estremunhado, e continuar o regalo da véspera.
V. foi digno do assunto. E dito isto, estaria dispensado de dizer mais nada, se não quisesse salientar virtudes e... apontar um erro. Primeira virtude: o desassombro. Segunda: o alto e distante lugar que dá ao Antero.
Eu desconhecia o episódio da correspondência com o Ramalho sobre o pedido de intervenção junto do Andrade Corvo. Arre! Foi um acesso pernicioso duma doença que nele era endémica: a frouxidão do carácter. Mas, nem assim! Não há maneira de deixarmos de adorar o canalha!
E verdadeiramente V. leu a alma do Eça com virtuosidade rembrandesca. Pesou até ao miligrama o claro-escuro. Virtude, aliás, queirozeana.
Excelentes as páginas em que evoca a Coimbra do nosso tempo. Se o Aquilino a tivesse frequentado e tentasse descrever, meteria «aldemenos» mais arcaísmos, mas não o faria melhor, com mais vivida reflexão dos sentidos. Uma única coisa lhe levo a mal: que não houvesse uma boa e larga referência a certas das «Cartas de Inglaterra», que, algum dia, na balança do Juízo Final, hão-de pesar, em seu favor, para resgate do seu scepticismo elegante, ladeira por onde resvalou às graves defecções.
Finalmente, a leitura do seu livrinho teve sobre mim efeitos tónicos. Andava caído do físico e da alma. Uma crise hepática e outra palustre conspiraram, conjugando-se, para me abater.
Sinto-me hoje melhor. E em grande parte o atribuo à leitura do livrinho: a essa janela aberta sobre as grandiosas e belas paisagens, onde nos viamos. Principalmente, o ar vivo que sopra das eminências do Antero fez-me bem. É bom sentir a camaradagem dos Santos.
E agora um pedido. Mais um, além do pedido dos trapos e com o mesmo fim. Entre as excelentes obras da Seara, contam-se os seus Cadernos de Estudo e Textos. Ora eu desejava socorrer a indigência dos companheiros, que me deram, não só em indumentária, mas na cultura. Estou-lhes a fazer um curso de História Pátria. Quero, além disso, fornecer leituras elementares, de selecção, a alguns deles, dotados de vivacidade e avidez intelectual.
Naturalmente, também desejo alguns para mim. Começarei por estes e pela oredem da sua urgência:
Crónica de D.
(Parece-me melhor mandar a lista à parte)
-- Crónica de D. João I (Lapa)
-- Líricas de Camões (Lapa)
-- Sobre História e Historiografia (Sergio)
-- O Cosmopolitismo de D. de Gois (Bataillon)
-- História de uma Catedral (Barreira)
-- Duas formas de expressão opostas na hist. da Arte (Jirmounsky)
Estes lhe rogo me envie pelo correio ou, se minha Mulher vier breve, por ela.
Quanto aos outros, enviarei amanhã a lista (bem mais numerosa) e rogo-lhe os faça entregar a minha Mulher.
Os primeiros meta na minha conta... Os segundos meto-os eu na sua, já que são para obras pias, daquelas que contribuem para a salvação das almas.
Cá estou esperando as provas da «Economia da Restauração». Conto enviar ainda um pequeno mapa à pena, para ilustração do primeiro texto.
Os meus repeitos a Sua Esposa e Sogra, minhas Senhoras.
Um grande abraço do amigo mt.º grato
Jaime Cortesão
13 Cartas do Cativeiro e do Exílio
(edição de Alberto Pedroso)

16
Out 05
publicado por RAA, às 16:23link do post | comentar
Tendo, em parte dos seus livros, o povo como tema, não o povo pitoresco, mas indivíduos pertencentes a determinados grupos sociais desfavorecidos, do emigrante ao seringueiro, da bordadeira ao contrabandista, passando pelo marçano, o pastor ou o operário têxtil, Ferreira de Castro foi o primeiro grande escritor içado do proletariado a operar uma transformação na perspectiva ideológica duma cultura, conseguindo, dessa forma, inscrever o seu nome individual no património literário nacional comum -- o que, convenhamos, não é pequeno feito.
António José Saraiva sustentou que ele «é o primeiro escritor português que não usa gravata.» (Iniciação na Literatura Portuguesa, Mem Martins, p. 158). Isto, que é um altíssimo elogio num país de literatos amanuenses, não significa a ausência de um apuro formal mais do que apropriado à intenção que ele tinha de comunicar-se intensamente. Tal como Régio, ele sentia-se acima de tudo escritor, e via as suas ideias veiculadas pelos livros como formas de servir a arte, e não o contrário... Lembremos as passagens avassaladoras sobre a floresta amazónica em A Selva, as cumeeiras do Barroso em Terra Fria, a tempestade, em A Lã e a Neve, os intensos diálogos interiores em A Curva da Estrada ou em A Missão, a investida dos índios ao acampamento de Nimuendaju em O Instinto Supremo, o primor dos textos memorialísticos, entre outros. Como escreveu Manuel Rodrigues Lapa, na sua clássica Estilística da Língua Portuguesa (4ª ed., Coimbra, p. 124), Castro é «um dos nossos mais elegantes prosadores».
Façamos também aqui um parênteses a propósito de um qualificativo que se tem colado a Ferreira de Castro, que de tão repetido se tornou num lugar-comum. A designação costumeira de «precursor do neo-realismo». No contexto nacional ela é imprecisa e irrelevante. Porque ou há várias maneiras de entender o neo-realismo, em que está sempre subjacente um conflito, um desajustamento social, a luta de classes, uma «tensão de devir», como diria Mario Sacramento, ou o neo-realismo tem de ser visto como a expressão artística de um desígnio político, que é o estar pelo menos de acordo com as posições do PCP sobre os diversos domínios em que a vida se exerce. Num contexto lato, direi, então, que Castro foi talvez o primeiro escritor neo-realista português , e não apenas um precursor; se o entendimento for restritivo, Castro que sendo um comunista libertário, um anarquista kropotkiniano, nunca quis pertencer ao PCP, não é neo-realista, nem precursor do neo-realismo, nem o seu romance A Lã e a Neve, que muitos costumam referir como uma das obras referenciais desta corrente, a começar pelo próprio Álvaro Cunhal, pode, desta forma emparceirar com Fanga, de Alves Redol, ou os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes.
Claro que isto se prende com a matriz ideológica do escritor, essencial para o percebermos, e aos seus livros.
Como disse inicialmente, Castro foi um libertário, um anarquista. O que distingue os anarquistas de outros sectores revolucionários da esquerda é a sua resistência a tudo o que possa restringir a condição livre do ser humano, a única que lhe é natural. E esse tudo manifesta-se nas formas corecivas de organização social, cuja expressão última é o Estado, mas também nas organizações «adjacentes»: igrejas, forças armadas, partidos políticos, tudo enfim, que de alguma forma possa coarctar a expressão da individualidade. Daí que, regra geral, os anarquista se associem por grupos de interesses sócio-profissionais, tendo sido precisamente na área sindical que registaram maior êxito organizativo.
Mas culturalmente também, o anarquismo foi muito forte entre nós, durante a I República. Está ainda por conhecer por dentro o grupo de intelectuais que se exprimia em jornais como o Suplemento Literário Ilustrado do diário A Batalha, a revista Renovação e também o histórico semanário O Diabo, escrito e dirigido pelos anarquistas do grupo de Ferreira de Castro: Julião Quintinha, Jaime Brasil, Assis Esperança, Roberto Nobre, Mário Domingues, Nogueira de Brito, Pinto Quartim e vários outros.
(continua)


(rectificado em 18-X-2005)

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