letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
15
Set 06
publicado por RAA, às 19:44link do post | comentar
Na História não há culpados, há vencedores e vencidos, povos ou grupos sociais esmagados e outros que constroem as vitoriosas interpretações futuras. Na segunda metade do século XVIII, jogava-se em Portugal um jogo de pólos opostos com um imenso vazio no centro. Este vazio ou esta ausência chamava-se Europa e o seu progresso económico, científico e filosófico. A violência, o extremismo e o vanguardismo de Estado de Pombal medem-se pela intensidade por que tentou, em menos de trinta anos, preencher solidamente este vazio, tornando Portugal menos Portugal e mais europeu. [...] Não o conseguiu, não porque as medidas estivessem erradas, mas porque a violência por que as aplicou criou tanto um deserto em redor do Estado, de que tudo dependia, quanto um campo concentracionário de quase dois mil presos e exilados.

O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa

25
Jul 06
publicado por RAA, às 23:25link do post | comentar

publicado por RAA, às 20:07link do post | comentar
Os portões dos Estaus abriam-se, o capelão do cárcere da penitência emergia, redondinho, vermelhinho como uma barrica de vinho, alçava o crucifixo de prata maciça, nobres seguiam-no, de peruca empoada, os «familiares» da Inquisição, olhos puros de fé, doze tocheiros entravam no Rossio, iluminando a madrugada, o alvorecer cedia a tanta luz beata, o livor do dia sorria, o céu azul de Lisboa nascia, perfilavam-se sacerdotes de sotaina branca, bainha rendada, o solicitador dos dominicanos ostentava a vara, os superiores das congregações adejavam a barba à brisa do Tejo, os dignitários seculares assomavam no palanque, procurando sombra sob o sólio, preveniam-se, o sol enrijaria, do portão saíam agora o arcebispo de Marzagão e Colhão, purpurino, o bispo de Mitilene e Cuzene, celestino, o bispo de Cajuzeiro e Pixoteiro, esmeraldino, o Inquisidor-Mor, Paulo de Carvalho, irmão do Ministro, o bispo de Lisboa, d. Anastácio Cagalhácio, o reitor dos Crúzios Sentados, o geral dos Levantinos Levantados, o abade do convento de Santa Maria dos Paneleiros, a chusma regozijava, admirando o donaire potente dos poderosos, de barriga inchada, passinhos miúdos, bofes pendentes do queixo gorduroso, sobrancelhas hirsutas, matagal de pêlos nas orelhas, os Peixotinhos perdiam-se no palanque dos convidados, a sua presença era forçada pela representação dos seus cargos, aquiesciam com a necessidade dos autos-de-fé, uma satisfação à Igreja, não se lhe podia tirar tudo de uma só vez, o Ministro forçara a Inquisição a submeter as suas decisões ao Conselho de Estado, o confisco dos bens transitara para o Estado, foram os dois primeiros passos seguros, dizia João Maria, político, um próximo Ministro, em menos de dez anos acabará com a Inquisição, até lá era comprazer e sorrir, circo atirado ao povo, pena era os palhaços serem queimados. Os penitentes emergiam no portão, baeta com a cruz vermelha, a representação do inferno atormentando as almas, a carocha amarela na cabeça, velas acesas na mão, cabeça baixa, um frade a seu lado forçando-os a arrependerem-se, e o povovéu -- a corja popular -- acidulado pelo vinho, ululava, uivava, gania, relinchava, zurrava, guinchava, ladrava, chiava, assobiava, mugia, carneira como sempre.
A Voz da Terra

23
Nov 05
publicado por RAA, às 22:19link do post | comentar | ver comentários (4)
1) Li apressadamente na livraria duas páginas do último de António Lobo Antunes, D'este viver neste papel aqui descripto -- as cartas enviadas a sua mulher. Soberbas. Não tenho dúvida de que se trata de um grande acontecimento cultural no sentido mais lato: a correspondência dum jovem alferes médico saudoso e apaixonado, atolado numa guerra tão estúpida que foi criminosa -- desde logo pela sua desnecessária estupidez. Um livro para a História. Tenho a certeza disso.
2) As cartas hoje publicadas pelo JL, de Fernando Assis Pacheco, Manuel Beça Múrias e Afonso Praça, mostram isso mesmo. Como há tanto material humano de primeira qualidade ainda a conhecer...
3) Miguel Real lança dois livros duma assentada: o ensaio O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa e um romance, a suceder ao excelente Memórias de Branca Dias: A Voz da Terra. Diz ele em micro-entrevista: «O romance histórico não deve reproduzir ficcionalmente a História, mas iluminá-la, abrindo-a a outras interpretações.»
4) A ler: Andrade Corvo, Perigos (Fronteira do Caos); Frederico Lourenço, A Odisseia de Homero adaptada para jovens; Graciliano Ramos, S. Bernardo (Cotovia); Miguel Real, A Voz da Terra e O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa (Quidnovi); Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Malva 62 (Quasi); Pedro Rodrigues, António Victorino d'Almeida Conta 50 Anos de Música (Quimera); Urbano Tavares Rodrigues, O Mito de D. Juan e Outros Ensaios de Escreviver (Imprensa Nacional); Paul Teyssier, A Língua de Gil Vicente (Imprensa Nacional); Miguel de Unamuno, A Vida de D. Quixote e Sancho (Assírio & Alvim).
5) A ouvir: Bach, Cantatas Profanas pelo Collegium Vocale de Gent, dirigido por Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi); Mafalda Arnauth, Diário (Universal); António Chainho e Marta Dias, Ao Vivo no CCB (Movieplay); Clã, Gordo Segredo ((EMI-VC).

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