Os portões dos Estaus abriam-se, o capelão do cárcere da penitência emergia, redondinho, vermelhinho como uma barrica de vinho, alçava o crucifixo de prata maciça, nobres seguiam-no, de peruca empoada, os «familiares» da Inquisição, olhos puros de fé, doze tocheiros entravam no Rossio, iluminando a madrugada, o alvorecer cedia a tanta luz beata, o livor do dia sorria, o céu azul de Lisboa nascia, perfilavam-se sacerdotes de sotaina branca, bainha rendada, o solicitador dos dominicanos ostentava a vara, os superiores das congregações adejavam a barba à brisa do Tejo, os dignitários seculares assomavam no palanque, procurando sombra sob o sólio, preveniam-se, o sol enrijaria, do portão saíam agora o arcebispo de Marzagão e Colhão, purpurino, o bispo de Mitilene e Cuzene, celestino, o bispo de Cajuzeiro e Pixoteiro, esmeraldino, o Inquisidor-Mor, Paulo de Carvalho, irmão do Ministro, o bispo de Lisboa, d. Anastácio Cagalhácio, o reitor dos Crúzios Sentados, o geral dos Levantinos Levantados, o abade do convento de Santa Maria dos Paneleiros, a chusma regozijava, admirando o donaire potente dos poderosos, de barriga inchada, passinhos miúdos, bofes pendentes do queixo gorduroso, sobrancelhas hirsutas, matagal de pêlos nas orelhas, os Peixotinhos perdiam-se no palanque dos convidados, a sua presença era forçada pela representação dos seus cargos, aquiesciam com a necessidade dos autos-de-fé, uma satisfação à Igreja, não se lhe podia tirar tudo de uma só vez, o Ministro forçara a Inquisição a submeter as suas decisões ao Conselho de Estado, o confisco dos bens transitara para o Estado, foram os dois primeiros passos seguros, dizia João Maria, político, um próximo Ministro, em menos de dez anos acabará com a Inquisição, até lá era comprazer e sorrir, circo atirado ao povo, pena era os palhaços serem queimados. Os penitentes emergiam no portão, baeta com a cruz vermelha, a representação do inferno atormentando as almas, a carocha amarela na cabeça, velas acesas na mão, cabeça baixa, um frade a seu lado forçando-os a arrependerem-se, e o povovéu -- a corja popular -- acidulado pelo vinho, ululava, uivava, gania, relinchava, zurrava, guinchava, ladrava, chiava, assobiava, mugia, carneira como sempre.
A Voz da Terra