letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
27
Abr 12
publicado por RAA, às 13:00link do post | comentar | ver comentários (2)

Leio a Peregrinação do Fernão Mendes Pinto, publicada postumamente em 1614, anotada pelo historiador Neves Águas. Grande escrita, da melhor escrita, um incipit inesquecível, dos começos mais arrebatadores de uma narrativa -- porque já sabemos muito do que a seguir leremos:

«Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; [...]».

E fundamental para sabermos de que massa somos feitos,  nós portugueses, mas também brasileiros, portugueses à solta nos trópicos.

 

Releio Capitães da Areia, do Jorge Amado, publicado em 1937 e queimado em praça pública de Salvador, com todos os livros anteriores do autor, no ano seguinte. Trinta anos depois, verifico que se mantém o encantamento com que então o li. O humor, a poética, a empatia, a envergadura de romancista. Claro que detecto hoje alguns problemas ao nível do estilo, nem sempre cuidado; mas se não há arte sem estilística (e a de Jorge Amado é adequada , porque serve a narrativa em vez de ofuscá-la) -- se não há arte sem estilo, este é insuficiente quando o escritor não é profundo. As estantes das bibliotecas públicas e privadas estão pejadas de monos irrelevantes de autores celebrados pela elegância, monos que nem sequer sobreviveram a quem os escreveu. Não Amado, de quem já alguém disse ter sido o Balzac brasileiro, pela sua dimensão de criador de mundos. Ele será sempre o deus e semi do romance da nossa língua comum -- como Eça caracterizou o (seu) amado Dickens, «deus e semi», em carta a Ramalho ou Oliveira Martins, se bem me recordo, depois de ter chamado a Balzac «semi-deus»...

 

Ah!, e sempre, sempre, muita poesia e muita BD, todos os dias. Os quadradinhos, que permitem a ilusão momentânea da infância e juventude perdidas; a poesia (e a música e a pintura), que quotidianamente antecipa o fim que me espera, o nada a que estou destinado, eu e as paixões da minha vida.


02
Abr 06
publicado por RAA, às 16:09link do post | comentar
Querido Amigo:

F.º de Peniche
28.VIII.40

Homem! há muito que me não acontecia ler um livrinho, de cabo a rabo, sem outras interrupções que não fossem as da minha nova disciplina de presidiário. E esse foi o volume que V. teve a gentileza de enviar-me sobre o Eça.
Comecei-o a ler à tarde, ou melhor à tardinha, e às 10 horas da noite ainda o lia com sofreguidão, quando a mão da Autoridade, girando o comutador, ceifou o enlevo com que saboreava a sua leitura. Hoje, mal luziu a alva, e a corneta me sacudiu da tarimba, foi para lavar o focinho estremunhado, e continuar o regalo da véspera.
V. foi digno do assunto. E dito isto, estaria dispensado de dizer mais nada, se não quisesse salientar virtudes e... apontar um erro. Primeira virtude: o desassombro. Segunda: o alto e distante lugar que dá ao Antero.
Eu desconhecia o episódio da correspondência com o Ramalho sobre o pedido de intervenção junto do Andrade Corvo. Arre! Foi um acesso pernicioso duma doença que nele era endémica: a frouxidão do carácter. Mas, nem assim! Não há maneira de deixarmos de adorar o canalha!
E verdadeiramente V. leu a alma do Eça com virtuosidade rembrandesca. Pesou até ao miligrama o claro-escuro. Virtude, aliás, queirozeana.
Excelentes as páginas em que evoca a Coimbra do nosso tempo. Se o Aquilino a tivesse frequentado e tentasse descrever, meteria «aldemenos» mais arcaísmos, mas não o faria melhor, com mais vivida reflexão dos sentidos. Uma única coisa lhe levo a mal: que não houvesse uma boa e larga referência a certas das «Cartas de Inglaterra», que, algum dia, na balança do Juízo Final, hão-de pesar, em seu favor, para resgate do seu scepticismo elegante, ladeira por onde resvalou às graves defecções.
Finalmente, a leitura do seu livrinho teve sobre mim efeitos tónicos. Andava caído do físico e da alma. Uma crise hepática e outra palustre conspiraram, conjugando-se, para me abater.
Sinto-me hoje melhor. E em grande parte o atribuo à leitura do livrinho: a essa janela aberta sobre as grandiosas e belas paisagens, onde nos viamos. Principalmente, o ar vivo que sopra das eminências do Antero fez-me bem. É bom sentir a camaradagem dos Santos.
E agora um pedido. Mais um, além do pedido dos trapos e com o mesmo fim. Entre as excelentes obras da Seara, contam-se os seus Cadernos de Estudo e Textos. Ora eu desejava socorrer a indigência dos companheiros, que me deram, não só em indumentária, mas na cultura. Estou-lhes a fazer um curso de História Pátria. Quero, além disso, fornecer leituras elementares, de selecção, a alguns deles, dotados de vivacidade e avidez intelectual.
Naturalmente, também desejo alguns para mim. Começarei por estes e pela oredem da sua urgência:
Crónica de D.
(Parece-me melhor mandar a lista à parte)
-- Crónica de D. João I (Lapa)
-- Líricas de Camões (Lapa)
-- Sobre História e Historiografia (Sergio)
-- O Cosmopolitismo de D. de Gois (Bataillon)
-- História de uma Catedral (Barreira)
-- Duas formas de expressão opostas na hist. da Arte (Jirmounsky)
Estes lhe rogo me envie pelo correio ou, se minha Mulher vier breve, por ela.
Quanto aos outros, enviarei amanhã a lista (bem mais numerosa) e rogo-lhe os faça entregar a minha Mulher.
Os primeiros meta na minha conta... Os segundos meto-os eu na sua, já que são para obras pias, daquelas que contribuem para a salvação das almas.
Cá estou esperando as provas da «Economia da Restauração». Conto enviar ainda um pequeno mapa à pena, para ilustração do primeiro texto.
Os meus repeitos a Sua Esposa e Sogra, minhas Senhoras.
Um grande abraço do amigo mt.º grato
Jaime Cortesão
13 Cartas do Cativeiro e do Exílio
(edição de Alberto Pedroso)

02
Out 05
publicado por RAA, às 15:05link do post | comentar | ver comentários (4)
Nunca as pompas da realeza e os cerimoniais da corte captaram a predilecção dos seus gostos simples. A sua casa do Vidigal, que ele mesmo edificou e em cujo retiro rural tanto se comprazia, em nada se diferença da de qualquer mediano lavrador alentejano. Aí frugalmente se alimentava da rude cozinha local, e habitualmente vestia, como os seus abegões, a jaqueta de burel e os ceifões de pele de borrego, podendo dizer na língua chã, predilecta do fundador da sua dinastia: -- «A mim todo o alimento me sustenta, todo o pano me cobre, toda a roupa me serve.»
Rei D. Carlos o Martyrisado

publicado por RAA, às 15:04link do post | comentar

18
Mai 05
publicado por RAA, às 16:02link do post | comentar
QUERIDA EMÍLIA -- Pelo que me dizes na tua carta de que passa muita gente -- que passa tudo! -- na rua em que está a casa da mãe, vejo que o que fazes é estar à janela em vez de saíres à maneira do Porto. Isso é o hábito mais anti-higiénico, mais burguês e mais ordinário que há. Peço-te o obséquio especial de não frequentares a janela. As janelas fizeram-se para alumiar as casas, e arejá-las, não se fizeram para ter senhoras penduradas. À janela para quê? Para ver a vida alheia, para olhar para as vizinhas, para ver os vestidos? Isso é de criada de servir. Que as vizinhas façam o que quiserem, que as outras passeiem como lhes apetecer, e que se vistam como entenderem; nós não temos nada com isso. Senhora janeleira faz-se linguareira, invejosa, maldizente e ruim. Mulher de janela, ou pública ou tola. Ainda se é uma janela de onde se descobre o mar, as florestas, os acidentes de uma paisagem e o ar livre e puro, ainda se compreende. Mas na rua da Senhora da Luz ou de S. Bartolomeu! É indecente. Rogo-te a fineza de passeares, de ires para Carreiros, para a costa, para a praia, para a beira do mar. Dize à Júlia da minha parte que se quiser filhos robustos, os não tire nunca da areia. Lembra-te dos benefícios (?) de crianças que Michelet manda construir à beira-mar. Os pequenos não devem sair nunca da areia, mesmo da areia húmida, porque a humidade do mar não constipa nem produz reumatismos, cura-os. Os pequenos como devem andar nas praias é nus. Como se devem enxugar da onda é na areia quente pelo sol. Assim é que se criam os fortes, e se regeneram os homens. Quem o pode fazer e o não faz aos seus pequenos tem uma grande responsabilidade diante da higiene e da humanidade. Sai, sai, sai, sai, sai, sai, sai! é o que te digo com muitos abraços do teu amigo do C
RAMALHO
[C. 1878]
Cartas a Emília, edição de Beatriz Berrini

publicado por RAA, às 15:26link do post | comentar
Ramalho Ortigão Posted by Hello

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