letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
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Jul 06
publicado por RAA, às 16:46link do post | comentar
Lisboa, 7 de Outubro de 1973

Minha querida amiga Natália Correia:

Foi preciso que uma grande poetisa tivesse voz orientante numa casa editora, para que se ressuscitasse um grande jornalista português, decerto o mais estranho de todos, mas que versos nunca fizera.
Não é debalde que a Natália se distingue também e muito altamente como romancista, psicóloga e pensadora. Não é debalde, porque todos estes méritos contribuíram certaemnte para considerar uma injustiça o esquecimento em que se encontrava esse fantástico Reinaldo Ferreira, tão fantástico na sua curta vida e nos seus próprios trabalhos, que se eu não o houvesse conhecido em carne e osso e sido muito amigo dele, duvidaria da sua existência.
Senhor duma prodigiosa imaginação, tão vasta e surpreendente que é bem provável não ter havido outra igual no nosso jornalismo, durante uma década o seu fulgurante talento encheu de estupefacção quantos o liam. E não só em Portugal, mas também em Espanha, onde trabalhou algum tempo.
Em tudo precoce, quer na vida aventurosa, quer na sua arte, Reinaldo Ferreira conheceu um espantoso êxito antes dos trinta anos. O seu nome tornara-se rapidamente célebre e o seu pseudónimo «Repórter X» mais famoso ainda. Falava-se dos seus triunfos profissionais com o mesmo tom que se utiliza para evocar actos singulares de figuras lendárias.
Mas no meio de toda esta ebriedade, uma mulher, que não devemos nem podemos condenar sem conhecer a sua verdade, que ela própria talvez não soubesse esclarecer bem, empurrou-o para um abismo, sem ser essa, evidentemente, a sua intenção.
Ansioso de olvido, ele escolhera, para curar o espírito doente, o pior de todos os remédios, aquele que lhe adoeceria o corpo também. Foi uma derrocada total. E Reinaldo, que tanto desejava esquecer, ficou esquecido ainda em vida. A Morte, talvez apiedada, apressou-se a levá-lo com a mesma prematuridade com que tudo florescera na sua existência.
Nobre gesto o seu, Natália, em querer que ele volte ao nosso convívio. Pode dispor completamente do artigo de que me falou -- o artigo que escrevi há já bastantes anos sobre esta figura excepcional, que tinha espírito europeu e morreu de paixão envenenada, como um português.
Um grande abraço do seu muito amigo e muito admirador
Ferreira de Castro
In Reinaldo Ferreira (Repórter X), O Táxi nº 9297

publicado por RAA, às 16:44link do post | comentar

14
Out 05
publicado por RAA, às 17:00link do post | comentar | ver comentários (1)
Sem qualquer conhecimento no meio jornalístico, resolveu permanecer em Lisboa, recomeçando do zero. Durante anos free lancer, condição em que foi eleito presidente do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa, colaborou incessantemente com reportagens, crónicas, contos, entrevistas nos principais órgãos da imprensa portuguesa dos anos vinte. Esta fase da sua vida, Ferreira de Castro evocou-a algumas vezes, uma das no texto em que recordou o grande amigo Reinaldo Ferreira, o célebre «Repórter X»:
«Sem honorários fixos, mal retribuídos os trabalhos avulsos, tínhamos de escrever por mês, para vivermos, dezenas e dezenas, mais, muito mais duma centena de artigos, novelas, contos e crónicas, que publicávamos em numerosíssimas revistas e jornais de Lisboa, ilhas, colónias e Brasil.» (O Livro do Repórter X, Lx., 1936)
Ao mesmo tempo ia editando uma série de títulos que viria a eliminar da sua tábua bibliográfica, por terem deixado de representar a sua maneira de se exprimir. Mas... (1921), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil, Sangue Negro (1923), A Boca da Esfinge (com Eduardo Frias, 1924), A Morte Redimida, Sendas de Lirismo e de Amor (1925), A Epopeia do Trabalho, O Drama da Sombra, A Peregrina do Mundo Novo (1926), A Casa dos Móveis Dourados e O Voo nas Trevas (1927) são os livros desta primeira fase, hoje só encontráveis em alfarrabistas, com raridade.
Estes livros reflectiam, por um lado a contemporaneidade conturbada da década, os anos da velocidade, a idade do jazz-band, como lhe chamou António Ferro, outro dos seus grandes amigos de então, um frisson magazinesco que corria em paralelo com temas que hoje classificaríamos como «fracturantes»: feminismo, racismo, eutanásia... Por outro lado, assistimos a uma motivação ideológica que se manifesta principalmente em jornais como A Batalha e revistas como Renovação, ambos da central sindical anarco-sindicalista CGT.
Esta tensão virá a desembocar no final da década (1928) no romance Emigrantes, em que o autor pretende dar voz aos que não têm voz, historiar aqueles que não têm lugar nas crónicas oficiais. Daí o nome colectivo do romance e da personagem principal,Manuel da Bouça, uma personagem arquetípica. No prefácio da 4ª edição escreverá:
«Biógrafos que somos das personagens que não têm lugar no Mundo, imprimimos neste livro despretensiosa história de homens que, sujeitos a todas as vicissitudes provenientes da sua própria condição, transitam de uma banda a outra dos oceanos, na mira de poderem também, um dia, saborear aqueles frutos de oiro que outros homens, muitas vezes sem esforço de maior, colhem às mãos cheias.» [Emigrantes, 24ªed., Lx, pp. 14-15.]

(continua)

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