letras, sons, imagens -- revolução & conservação -- ironia & sarcasmo -- humor mau e bom -- continua preguiçoso
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Dez 06
publicado por RAA, às 18:56link do post | comentar

Porque razão continuamos a folhear a presença com um interesse e um deleite que não esmorece, passadas oito décadas sobre a publicação do primeiro número? A resposta reside naturalmente nos traços distintivos que a caracterizaram -- inovação e rebeldia, espírito crítico e acção doutrinária --, na qualidade de muitos dos colaboradores e, acima de tudo, dos quatro directores, que souberam interpretar o seu momento histórico -- e ser modernos. Como escreveria o maior deles, sobre outro assunto: a presença continha em si «a parte do futuro que já exist[ia] no presente.» (2)
E justo é que os individualizemos: José Régio (1901-1969), poeta, dramaturgo, romancista e ensaísta (sem esquecermos o memorialista, o diarista e também o artista plástico) revelou-se nesta dispersão fecunda um dos escritores mais completos do seu século; e seria sempre um autor de primeiro plano se houvesse cultivado apenas um daqueles géneros. João Gaspar Simões (1903-1981), apesar de novelista, foi o crítico por antonomásia, tantas vezes menosprezado enquanto tal, mas cuja obra é um monumento à persistência e ao ludismo literário ensaístico (literatura, literatura, literatura), pesem embora as parcialidades e os ódios de estimação mal disfarçados que lhe tolhiam por vezes a clarividência e granjearam alguns inimigos. (3) Branquinho da Fonseca (1905-1974), não apenas contista de excepção, como poeta muito apreciável sob o o semi-heterónimo António Madeira (4), um príncipe da cultura portuguesa (são concepção sua as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, ensaiadas em Cascais, na década de quarenta, quando foi conservador do Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães (5)) que deixou a marca do seu bom gosto expressa no grafismo da folha. Adolfo Casais Monteiro (1908-1972) -- que assumiria a partilha da direcção em 1931 (7) --, poeta sofrível, crítico assertivo, importante ensaísta, docente universitário no seu exílio brasileiro.
À aventura iniciada em 10 de Março de 1927, materializada em oito páginas de papel pardo, vendida não se sabe a quem pelo preço de um escudo, agregaram-se jovens condiscípulos de Coimbra (Edmundo de Bettencourt, Francisco Bugalho, Saul Dias, Fausto José, António de Navarro, Alexandre d'Aragão e, marginalmente, Vitorino Nemésio e Miguel Torga, usando ainda o nome civil), ao lado da figura tutelar de Afonso Duarte, poeta mais velho (1885-1959), «colaborador da Águia e vagamente saudosista» (8), com um largo ascendente sobre quase todos eles (9), e, um pouco mais tarde, um jovem poeta portuense, dos maiores do segundo modernismo talvez aquele que ainda não foi reconhecido enquanto tal: Alberto de Serpa; a ela aderiu gente do primeiro modernismo: desde logo Fernando Pessoa -- que começou por ter como elo de ligação o presencista de Lisboa Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia --, com colaboração abundante e significativa, Almada Negreiros, Luís de Montalvor, Raul Leal, Armando Cortes-Rodrigues, Gil Vaz, Mário Saa e António Botto; até ela chegaram os poetas da «novíssima geração», neo-realistas como Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Fernando Namora e João José Cochofel.
(2) José RÉGIO, «Da geração modernista», presença, n.º 3, Coimbra, 8 de Abril de 1927, p. 1. Todas as citações e referências serão feitas a partir da edição fac-similada compacta em três volumes, Lisboa, Contexto, 1993.
(3) Para a pequena crónica ficaram os trocadilhos que lhe aplicaram o bilioso Jaime Brasil, chamando-lhe «o nosso Sainte-Boeuf», e o impiedoso Tomás Ribeiro Colaço, que aludiu a uma alegada fixação do crítico como a «proustatite de Gaspar Simões»...
(4) Embora António Branquinho da Fonseca tenha recuperado um apelido materno (Madeira), não parece descabido falar em, pelo menos, semi-heteronímia, dada a circunstância de a presença, por algumas vezes, ter apresentado poemas de Branquinho e Madeira, cujas possíveis distinções -- evidentes no plano formal -- caberia definir.
(5) Ver Branquinho da FONSECA, Relatório do Conservador do Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães (1943), Cascais, Câmara Municipal, 1997.
(6) Basta folhear a colecção da presença e verificar como o entusiamante grafismo se desvaneceu com a saída de Branquinho. No seu espólio -- depositado no Arquivo Histórico Municipal de Cascais --, conservam-se desenhos e vinhetas que imediatamente evocam a revista.
(7) Estreara-se na revista com um pequeno ensaio «Sobre Eça de Queirós», presença, n.º 17, Dezembro de 1928, pp. 1 e 11.
(8) «[...] é um poeta que, pela expressão, se tem de considerar moderno». João Gaspar SIMÕES, «Defesa da poesia moderna contemporânea» [1937], Novos Temas, Lisboa, Editorial Inquérito, 1938, p. 93. Segundo Casais, terá «desempenha[do], entre a geração do Orpheu e a da Presença, papel idêntico ao que teve a [poesia] de Pessanha, entre a do simbolismo e a do Orpheu». Adolfo Casais MONTEIRO, «A poesia da Presença» [1972], O que Foi e o que Não Foi o Movimento da Presença, edição de Fernando J. B. Martinho, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1995, p. 127.
(9) «[...] nós os da Presença, descobridores do génio deste grande lírico.» João Gaspar SIMÕES, Retratos de Poetas que Conheci, Porto, Brasília Editora, 1974, p. 33.
(continua)

31
Jul 06
publicado por RAA, às 19:20link do post | comentar










(esq.-dir.) M. Torga, António de Sousa,
A. Duarte, P. Quintela e V. Nemésio
fonte

05
Fev 06
publicado por RAA, às 17:36link do post | comentar
Posted by Picasa

publicado por RAA, às 16:41link do post | comentar
Montpellier
(Collège des Écossais,
Plan des Quatre Seigneurs),
25 de Novb.º 1934.
Meu caro José Régio
Deixe-me exprimir-lhe antes de mais, antes da crítica e de tudo a minha admiração, surpresa, encanto, entusiasmo, fé (e que mais?) pela leitura do seu livro. Vou apenas a págs. 258, mas já fui agarrado, senão rigorosamente desde o príncípio, desde bastante no começo. Assim é que estou faltando ao planos que traçara: ler o seu livro apenas em viagem, e até onde chegasse a viagem. E é curioso que isto se tenha dado quando uma das coisas que terei a dizer-lhe é que o seu livro não é romance senão por alguns aspectos. Mas veja já, veja imediatamente como a intrusão da crítica numa impressão sincera e complexa é uma coisa limitante, além de poder ser uma espécie de pedrada... Não; o seu livro é uma fortíssima e extraordinária coisa. Extraordinária para nós portugueses; comum talvez só para uma das duas estreitas dúzias de escritores do mundo. E de novo lhe estraguei o que lhe digo com esta inclinação aldeã de colocar a «música» da terra num plano de «música» de outras terras! Nacionalismo, meu caro José Régio, e vícios de uma fácil «Literatura Comparativa», -- manhas de professor... A verdade é que eu queria passar-lhe para aqui, quase sem meditação (e sobretudo sem premeditação) a porção de coisas que estão a flutuar cá dentro e que me vêm jogadas do seu livro: a poesia extraordinária que nele pulsa; a prosa corrente e ao mesmo tempo rara com que é feito -- rigorosa e ondulante, toda afinada pelo timbre português sem perder nada do tom pessoal de quem a escreve e da cadência a ideias e sensações de toda a parte. Nem quero calcular, organizar esta comunicação do que sinto, e é bem triste afinal que as correntes que nos atravessam tenha a necessidade de fios!
Há páginas em que V. atinge a luminosidade de toda a expressão que conseguiu libertar-se dos seus meios ou da consciência deles para chegar à terrível ou inefável nudez do inexprimido -- e lembro esta página a que já cheguei hoje, 26, dia em que continuo esta carta (p. 323). Aí V. justifica involuntariamente, com naturalidade genial, a escolha do Discours de la Méthode p.ª título das duas Mem.as de Jaime Franco, quando é levado a suspeitar da inutilidade do seu «relatório» e da sua possível gaguez em face da «força de sistematização e propriedade da linguagem dos filósofos e dos sábios». Divina gaguez essa que «tritura» (um verbo de V.) as mil e uma contradições do suceder íntimo e do pensamento dele, multiplicado e reproduzido até à saciedade e à dor, recaído depois em novas fornalhas do «monstro» e outra vez levado ao tenso fulgor da reflexão.
Paro por aqui, por que me apeteceria não acabar. Não toco nos motivos porque o seu livro não é inteiramente romance. V. conhece-os. O seu livro, aliás, não sendo romance, é muito mais. E não sei porque me surge como uma dessas mensagens de cumieira: umas Confissões de St.º Agostinho, ou assim. De censurável (e até de fastidioso) só certas páginas em que Serra contracena com os rapazes do Grupo e não se sabe porque motivo -- social e lógico motivo -- se zangam, formalizam, melindram ou amuam. Confesso que aí cheguei muitas vezes a enfadar-me e a amarrotar as páginas, furioso consigo... Mas saio do Jogo da Cabra Cega com uma impressão decididamente forte, muitas vezes empolgada, -- e (deixe-me dizer-lhe) com uma sensação de pequenez minha, da mediocridade dos meus meios, que oxalá o seu exemplo, tornado estímulo, ajude a transformar nalguma coisa de melhor. Um grande abraço do
Nemésio.
In Eugénio Lisboa, O Objecto Celebrado

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